Alberto Caeiro
Quando Eu não te Tinha
Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima ...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza ...
Tu mudaste a Natureza ...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.
Alberto Caeiro, in 'O Pastor Amoroso'.
Entre os heterônimos de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro é considerado o mestre, aquele, conforme a definição de seu criador, que escreve “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever”. No poema que você leu agora, é possível notar as principais características da poética de Caeiro, personagem do rico e enigmático universo de Fernando Pessoa.
Alberto Caeiro é o poeta do campo, o singelo guardador de rebanhos. Nasceu em Lisboa, mas viveu a vida no campo, aos cuidados de uma tia-avó idosa, sua companheira desde o falecimento precoce dos pais. É importante ressaltar o interessante processo de construção da alteridade de cada um dos heterônimos, cuidadosamente forjados por Pessoa: além de biografias próprias, também apresentam grandes diferenças estilísticas, o que comprova a genialidade desse que é tido como um dos maiores poetas da língua portuguesa.
“(...) A vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história. […] Ignorante da vida e quase ignorante das letras, sem convívio nem cultura, fez Caeiro a sua obra um progresso imperceptível e profundo, como aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o desenvolvimento lógico das civilizações. […] Por uma intuição sobre-humana, como aquelas que fundam religiões, porém a que não assenta o título de religiosa, por isso que repugna toda a religião e toda a metafísica, este homem descreveu o mundo sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não contém uma interpretação (...)”.
(Fernando Pessoa in “Páginas Íntimas e de Autointerpretação”)
Foi sob a alcunha de Alberto Caeiro que o livro O Guardador de Rebanhos, um dos mais emblemáticos da vasta obra de Pessoa, foi apresentado ao público. Um impulso criativo fez com que o poeta produzisse, em um único dia, os mais de trinta poemas que compõem a principal obra desse heterônimo que, diferentemente de Álvaro de Campos e Ricardo Reis (outros nomes que fazem parte do processo de fragmentação psicológica de Fernando Pessoa), utilizava uma linguagem simples e direta, negando questões metafísicas, a subjetividade e a introspecção, elementos tão comuns para tantos poetas.
Para Caeiro, só é possível viver sem dor e sentir sem pensar, resistindo ao pensamento filosófico que afasta o homem de sua essência. Para você conhecer um pouco mais sobre esse heterônimo de Fernando Pessoa, o Mundo Educação escolheu dois belos poemas para você ler e apreciar. Boa leitura!
Alberto Caeiro é um poeta antimetafísico: seus poemas transbordam bucolismo e repreendem qualquer pensamento filosófico
Da Minha Aldeia
Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
O Meu Olhar
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...