Miscigenação

A miscigenação é um processo de fusão, de mistura de diferentes raças (entendendo raça do ponto de vista sociológico, ou seja, como etnia). Durante a história humana, a miscigenação ocorreu tanto de maneira espontânea, com processos de reprodução entre etnias diferentes por meios de casamentos, de acordos e de convivência em conjunto nos mesmos territórios, quanto de maneira forçada, com a escravização de povos, que forçou processos migratórios e de miscigenação.

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Resumo sobre miscigenação

  • A miscigenação é um processo de mistura de grupos étnicos, culturais e/ou religiosos diferentes.
  • A miscigenação abrange processos de misturas biológica, promovendo o cruzamento genético entre populações diferentes, e cultural, quando se fundem costumes, religiões, idiomas, valores ou qualquer outro traço antropológico cultural.
  • A miscigenação é um fenômeno que ocorreu em praticamente todo o mundo.
  • Apesar de ser um fenômeno praticamente global, a miscigenação tem características que variam de acordo com o local ou com o período histórico e com os povos envolvidos.
  • Os países latino-americanos, por exemplo, tendem a ter uma miscigenação voltada para a união de várias etnias de povos originários (indígenas), de várias etnias de povos africanos e de europeus de vários países diferentes.
  • Podemos analisar a miscigenação como um processo, ambiguamente, rico do ponto de vista cultural, mas que levou a processos de exclusão e de desigualdade social, por conta de fatores sociais ligados à colonização e à escravização.

O que é miscigenação?

Imagem explicando o que é miscigenação.
A miscigenação abrange processos de mistura tanto biológica quanto cultural. (Créditos: Gabriel Franco | Mundo Educação)

A miscigenação é o resultado do processo de cruzamento de povos de culturas, de origens e de raças diferentes. Esse processo ocorre a partir de elementos étnicos, culturais e religiosos. O senso comum tende a pensar na miscigenação apenas como a mistura biológica, porém, ela se aplica a elementos resultantes de trocas culturais, linguísticas e simbólicas, tanto das que ocorreram por processos de miscigenação espontânea, quanto das que surgiram por processos forçados.

A miscigenação foi malvista sobretudo por um pensamento eurocentrista, eugenista e racista predominante no século XIX e na primeira metade do século XX. As visões negativas sobre a miscigenação não passavam de uma histeria racista embasada em pseudociências tão racistas quanto, como a eugenia, proposta pelo antropólogo britânico Francis Galton.

No entanto, outras visões surgiram, como as críticas do antropólogo alemão Franz Boas ao etnocentrismo racista da antropologia do século XIX. Aqui no Brasil, uma voz dissonante contra o racismo científico dos eugenistas veio de um aluno de Franz Boas na Universidade de Colúmbia, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Freyre diz que: “Foi sobretudo pela mestiçagem, que tão profundamente se fez no Brasil, que se conseguiram atenuar os antagonismos sociais e aproximar, fisicamente e psicologicamente, as raças e as culturas em choque.” |1|

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Miscigenação no mundo

A miscigenação está presente na formação das sociedades, desde grandes impérios antigos até a formação dos Estados contemporâneos. Essa mistura ocorreu a partir de migrações, de guerras, de rotas comerciais e de escravizações. A seguir, alguns exemplos:

  • A Grécia Antiga não era unificada, sendo um conjunto de cidades-estados diferentes, com culturas diferentes, que se relacionavam entre si e com outras cidades da Península Itálica, do norte do continente africano e do Oriente Médio para fazer comércio.
  • O Império Romano ficou conhecido pelo domínio de território e pela consequente incorporação de culturas de vários povos da Europa, da África e da Ásia.
  • Árabes, persas, indianos e chineses tiveram forte contato entre si, o que resultou em um processo de miscigenação cultural.
  • O processo de colonização europeia na modernidade resultou na mistura cultural pelo contato com povos originários das Américas, da África e da Oceania.  

Miscigenação no Brasil

Vários pensadores brasileiros, dentre eles antropólogos, sociólogos e historiadores, dedicaram-se a traçar o que chamam de “interpretar o Brasil”. Gilberto Freyre acredita que a miscigenação ocorreu por meio de uma suposta relação democrática entre escravizados e senhores no interior de um modelo patriarcal. No entanto, essa visão é extremamente romantizada e não condiz com a realidade.

Autores como Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, Boris Fausto e Roberto DaMatta nutrem outras perspectivas que unem um ponto comum: a miscigenação ocorreu no Brasil por meio de um processo violento, chamado na sociologia latino-americana de “entrechoque”. O entrechoque entre colonizadores, colonizados e escravizados foi um processo que perpetuou pela violência as marcas do colonizador sobre o colonizado, tentando, a todo custo, apagar a memória daqueles que detinham a menor força no processo de aculturação, ou seja, indígenas e escravizados.

Roberto DaMatta diz que há um mito difundido sobre as três raças no Brasil para limpar a imagem do colonizador e eufemizar suas ações cruéis. Darcy Ribeiro enfatiza que a questão é muito mais complexa quando a gente olha com mais cuidado a quantidade de povos indígenas de diferentes etnias que viviam aqui, bem como a variedade de locais de origem dos africanos que vieram na condição de escravos. No entanto, não há como negar que somos marcados pela grande miscigenação.

Sobre a miscigenação no Brasil, Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, diz:

É de se supor que, por esse caminho, a população brasileira se homogeneizará cada vez mais, fazendo com que, no futuro, se torne ainda mais coparticipado por todos um patrimônio genético multirracial comum. Ninguém estranha, no Brasil, os matizes de cor dos filhos dos mesmos pais, que vão, frequentemente, do moreno amulatado, em um deles, ao branco mais claro, no outro; ou combinam cabelos lisos e negros de índio ou duros e encaracolados de negro, ou sedosos de branco, de todos os modos possíveis; com diferentes aberturas de olhos, formas de boca, conformações nasais ou proporções das mãos e pés. Na verdade, cada família brasileira de antiga extração retrata no fenótipo de seus membros características isoladas de ancestrais mais próximos ou mais remotos dos três grandes troncos formadores. Conduzindo, em seu patrimônio genético, todas essas matrizes, os brasileiros se tornam capazes de gerar filhos tão variados como variadas são as faces do homem. |2|

Acesse também: Democracia racial — entenda esse termo que diz respeito a uma suposta igualdade entre raças diferentes

Miscigenação cultural

Miscigenação cultural é a própria ideia de miscigenação, que não se limita a questões biológicas, mas se estende para o campo antropológico da cultura. O que se evidencia a partir da miscigenação é um processo de formação cultural complexa, que leva em conta elementos culturais, como valores, hábitos, idioma, música, danças, religião, culinária, dentre outros elementos distintivos da cultura.

Miscigenação étnica

A miscigenação étnica é um termo um pouco mais preciso na antropologia, pois leva em conta o fenótipo dos indivíduos para tentar estabelecer suas relações ancestrais. Nas teorias do século passado, por conta de uma visão colonialista hierarquizante, era comum a utilização acadêmica de termos como “mulato”, “caboclo”, “cafuzo” e “mameluco” para definir a miscigenação. Mulatos eram filhos de negros e brancos, caboclos e mamelucos eram filhos de indígenas e brancos e cafuzos eram filhos de negros e indígenas. Essa classificação caiu em desuso na academia.

Hoje, o IBGE conta com as denominações “branco”, “preto”, “pardo” (pessoas com linhagem preta e branca na família que não se veem, necessariamente, como um ou outro), “amarelos” (povos orientais) e “indígenas”. Todas essas denominações compõem o quadro étnico e reconhecem a miscigenação.

Miscigenação religiosa

Assim como há o entrecruzamento de idiomas, culinária, hábitos e valores culturais, há também a miscigenação religiosa. À medida que culturas diferentes se misturam, havendo o entrechoque, muitas vezes violento, tende a haver também a mistura de elementos e símbolos religiosos. Podemos levantar três pontos centrais a respeito da miscigenação religiosa:

  • O entrechoque violento tende a impor a religião do colonizador sobre o colonizado, convertendo de maneira forçada as populações originárias e fazendo com que sua cultura perca força e até desapareça.
  • Por mais que o colonizador tente impor sua visão à força, a miscigenação é fator preponderante para que muitas religiões se mantenham, mesmo que escondidas, preservando as culturas tradicionais. Podemos tomar como exemplo o candomblé, que é uma religião brasileira de matriz africana que surgiu como forma de preservar os cultos ancestrais aos orixás.
  • A miscigenação provoca também o sincretismo religioso, ou seja, nessas relações, muitas religiões misturam-se e formam outras religiões. No Brasil, o próprio candomblé é uma religião sincrética, pois reúne uma base de vários cultos de origem africana, derivados de povos Iorubá, Bantus e Jejes. Aqui no Brasil, o candomblé ainda sofreu forte influência do catolicismo, até mesmo para esconder a prática da religião ancestral, durante muito tempo proibida. A umbanda é outro exemplo de religião sincrética, que mistura elementos do candomblé, do espiritismo e do catolicismo.

Acesse também: Aculturação — a assimilação e o desaparecimento de determinadas práticas culturais em detrimento de outras

Miscigenação x embranquecimento

Durante o século XIX, a partir de pseudociências racistas, a eugenia, de Francis Galton, e a teoria do criminoso nato, do psiquiatra, criminologista e higienista italiano Cesare Lombroso, estavam em alta. Na Europa, discutia-se isso e discutia-se também o início da Antropologia, que começou com teorias racistas, como a de Herbert Spencer e de Edward Tylor, que desenvolveram o que chamaram de “hierarquia das raças” a partir do “evolucionismo social”. Essa teoria unia o evolucionismo de Charles Darwin com as concepções racistas de hierarquia das raças medida pelo que achavam ser o “índice de desenvolvimento cultural das sociedades”.

Eles concluíram que os europeus brancos eram mais desenvolvidos, os orientais estavam se desenvolvendo, os ameríndios estavam um pouco abaixo na escala e, por último, estavam os africanos. Embora fosse primo do eugenista Francis Galton, o biólogo Charles Darwin, ligado à teoria da evolução das espécies, nada tinha a ver com o evolucionismo de Tylor e de Spencer e sequer concordava com o seu primo Galton.

Para partidários dessas teorias, a saída para o desenvolvimento progressista de uma nação era o embranquecimento da população, eliminando a miscigenação e desestimulando a vida e a reprodução de povos não brancos. O resultado foi desastroso, sobretudo nos países colonizados, pois resultou na marginalização histórica de uma massa da população, o que aumentou a criminalidade e gerou grandes sequelas sociais.

As teorias racistas levaram muitos estudiosos brasileiros a concluírem que a saída para desenvolver o Brasil era o embranquecimento. Após a abolição da escravidão, o governo estimulou a vinda de europeus para fornecer mão de obra. Muitos italianos vieram trabalhar nas fazendas de café, e houve intensa imigração alemã para cidades da região Sul do Brasil.

Do mesmo modo, havia inúmeros esforços para perseguir e marginalizar a população negra, como a perseguição do samba, por ele estar associado aos terreiros de candomblé e ao “crime de vadiagem”, estipulado no Código Penal de 1890. O mesmo código também proibiu a capoeira, prática quilombola ancestral que era utilizada como resistência dos negros que fugiam e lutavam contra os capitães do mato.

Quais as consequências da miscigenação?

A princípio, podemos destacar que a miscigenação, em si, é positiva. Biologicamente, ela gera maior variabilidade genética, o que tem um valor evolutivo positivo. Antropologicamente falando, ela é responsável pela fusão de elementos culturais que provocam uma cultura diversificada, sendo muitas vezes na história responsável por saltos evolutivos na produção do pensamento.

No entanto, apesar da miscigenação, em si, render resultados positivos, o modo como ela aconteceu, muitas vezes não foi tão positivo. Quando falamos em miscigenação forçada por entrechoque, temos um processo violento que tende a tentar apagar a cultura do colonizado, ficando esta subjugada à cultura do colonizador. Além disso, o processo de colonização e de escravização é também responsável, em boa parte, pelo racismo estrutural e evidente que prevalece na sociedade mesmo após o fim do sistema colonial.

Exercícios resolvidos sobre miscigenação

Questão 1

(Enem)

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação.

FREYRE, G. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1999.

A temática discutida é muito presente na obra de Gilberto Freyre, e a explicação para essa recorrência está no empenho do autor em

A) defender os aspectos positivos da mistura racial.

B) buscar as causas históricas do atraso social.

C) destacar a violência étnica da exploração colonial.

D) valorizar a dinâmica inata da democracia política.

E) descrever as debilidades fundamentais da colonização portuguesa.

Resolução:

Alternativa A.

Gilberto Freyre foi um ávido defensor da miscigenação como aspecto positivo da formação do povo brasileiro.

Questão 2

(Enem)

— Recusei a mão de minha filha, porque o senhor é… filho de uma escrava.

— Eu?

— O senhor é um homem de cor!… Infelizmente esta é a verdade…

Raimundo tornou-se lívido. Manoel prosseguiu, no fim

de um silêncio:

— Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei Ana Rosa, mas é por tudo! A família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa a esse respeito, e como ela é toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja uma asneira; concordo que seja um prejuízo tolo! O senhor porém não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!… Nunca me perdoariam um tal casamento; além do que, para realizá-lo, teria que quebrar a promessa que fiz a minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou descendente direto de portugueses!

AZEVEDO, A. O mulato. São Paulo: Escala, 2008.

Influenciada pelo ideário cientificista do Naturalismo, a obra destaca o modo como o mulato era visto pela sociedade de fins do século XIX. Nesse trecho, Manoel traduz uma concepção em que a

A) miscigenação racial desqualificava o indivíduo.

B) condição econômica anulava os conflitos raciais.

C) discriminação racial era condenada pela sociedade.

D) escravidão negava o direito da negra à maternidade.

E) união entre mestiços era um risco à hegemonia dos brancos.

Resolução:

Alternativa A.

O texto citado deixa claro que a miscigenação, que gera o que se chama “mulato” no texto, é malvista pelo interlocutor.

Notas

|1| FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 367.

|2| RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 16.

Fontes

ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de; EUGÊNIO, Fernanda; PRADO, Rosangela Nair de Carvalho. Sociologia em movimento. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2016.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

Schwarcz, Lilia Moritz; Starling, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Escritor do artigo
Escrito por: Francisco Porfírio Graduado e mestre em Filosofia, atua como professor de Filosofia, Sociologia e História da Arte. É goianiense, apaixonado por literatura, arte e gastronomia e tenta ser corredor de rua nas horas vagas (quando tem horas vagas).

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