Wilson Martins e o questionário da Unesco sobre a democracia
Wilson Martins (1921-2010) ficou conhecido por ser um dos mais impressionantes críticos literários brasileiros e autor da monumental “História da Inteligência Brasileira”, em sete volumes, que abrange um período longuíssimo, indo desde a segunda metade do século XVI até 1960. No entanto, há outro lado desse intelectual que ainda é pouco conhecido do grande público: suas reflexões no terreno das ciências sociais sobre sociologia e ciência política e, mais especificamente, a sua colaboração ao questionário da Unesco sobre o conceito de democracia, feito em 1949.
A Unesco, como é sabido, foi fundada em 1945 no mesmo contexto em que a ONU, isto é, após a Segunda Guerra Mundial, tendo um enfoque voltado para a cultura e a educação em um mundo que havia visto pela segunda vez uma onda de catástrofes inimagináveis. Em sua segunda conferência geral, realizada em 1947, a UNESCO propôs aos intelectuais das mais diversas nações a realização de um simpósio sobre o conceito de democracia. Esse simpósio foi precedido pela composição de um relatório a ser escrito a partir de um questionário sobre a palavra democracia. O nome do simpósio era Democracy In World Of Tensions (Democracia num Mundo de Tensões), e os trabalhos e apreciações foram publicados em 1951.
Wilson Martins foi o único intelectual brasileiro a contribuir com o questionário, enviando à Unesco sua resposta. A sugestão de participar do referido questionário foi dada a Martins pelo antropólogo Gilberto Freyre, de quem Martins foi uma espécie de herdeiro intelectual e um grande admirador. A preocupação da Unesco com a palavra democracia, expressa no questionário, ocorria em razão do uso que tanto nazistas, fascistas e stalinistas quanto nações como a Inglaterra, os EUA e o Brasil faziam da mesma palavra. Todos se julgavam democráticos, ao seu modo.
As questões da Unesco distribuíam o problema em quatro eixos: 1) que critérios permitem distinguir as “várias democracias” que eram reivindicadas até o fim da guerra? 2) Que relação há entre a democracia formal (conceito filosófico) e a democracia real (efetivada nas mais diferentes nações e circunstâncias)? 3) A democracia determina o dever de combater um agrupamento antidemocrático? 4) As divergências dentro da democracia refletem conflitos de valor ou escondem acordos profundos que trabalham para uma aproximação?
Em sua resposta ao questionário, Martins julgou que essa confusão terminológica nasceu de uma confusão ideológica implícita na palavra democracia. A democracia formal (ou filosófica), para Martins, era aquela que remontava à proposta do filósofo Rousseau, isto é, a uma proposta romântica e universalista que enxergava no regime democrático muitas possibilidades de transformação, mas que não se ateve à realidade específica de cada nação, às peculiaridades de cada país, povo, etnia, etc. A democracia, segundo Wilson Martins, é uma forma, ou melhor, uma fôrma, em que os governos democráticos com suas condições particulares vêm ajustar-se.
Entretanto, as conclusões de Wilson Martins sobre esse conceito não foram muito otimistas, dado o seu realismo político e a sua fuga de ideologias. Ele finalizou sua resposta ao questionário apelando a um refinamento da diferença entre o conceito filosófico de democracia e o conceito político que a mesma palavra carrega. O primeiro não pode se sobrepor às condições reais de aplicação do segundo. Disse Martins: “As possibilidades duma conciliação, finalidade principal da Unesco, parecem, por consequência, extremamente raras e, quando existem, não tocam senão pontos de secundária importância. Que se consiga, entretanto, clarificar o conceito político e filosófico de democracia, já será um resultado de interesse vital.” (MARTINS, Wilson. Introdução à democracia brasileira. São Paulo: Editora Globo. p. 35)
__________________
* Créditos da imagem: Jornal O rascunho