História e Teologia da História
Ao longo da história, no desenvolvimento das mais variadas culturas, sempre houve um esforço de compreensão do sentido da presença humana na Terra. Acompanhando esse esforço, sempre esteve presente a confluência entre as habilidades intelectuais (como os saberes científicos e a filosofia) e os exercícios espirituais, sendo esses últimos obras dos sistemas religiosos. Contudo, não há nenhum outro sistema de pensamento que tenha se desenvolvido no interior de uma religião que procurou explicar a fundação do mundo, a criação do homem e o seu destino futuro, levando em conta o fato de que um Deus tenha se feito Homem, habitado a Terra e se sacrificado em prol da salvação do próprio homem. O cristianismo é a única, em toda a história humana, que concebe isso.
Com base nessa perspectiva, teólogos e historiadores cristãos procuram articular as compreensões sobre a totalidade (ou integralidade) dos eventos históricos no advento da pessoa de Cristo. Cristo exerce uma centralidade na história, para a tradição de pensadores cristãos, por uma razão muito simples e óbvia, mas nem sempre fácil de ser entendida: Cristo é concebido como o Verbo encarnado, isto é: o logos divino, a inteligência divina que tudo revela, tudo tanto sobre o passado anterior ao seu advento quanto sobre o porvir, o futuro. Para a teologia da história – a disciplina que estuda a centralidade de Cristo na história –, é na vida, na morte e na ressurreição de Jesus Cristo que estão os mistérios e a fonte de sabedoria para o entendimento da própria história da humanidade.
O fato de Deus, em Cristo, ter se tornado um ser histórico, um homem, estabelece um cruzamento entre a eternidade e o tempo. Desde as origens do cristianismo, na era dos apóstolos, há uma tentativa de sistematização dessa concepção. São Paulo, o apóstolo que expandiu consideravelmente o cristianismo ao pregar a mensagem dos evangelhos nos domínios de cultura helenística e romana, foi o grande catalisador da compreensão histórica da religião cristã.
Das cartas paulinas, os chamados “pais da Igreja”, bispos como Orígenes, Santo Agostinho etc., procuraram dar prosseguimento a essas reflexões. Porém, essa não é uma característica apenas de pensadores da Idade Média. No século XX (e ainda hoje), muitos intelectuais se puseram a pensar essas implicações. Um dos mais destacados é o historiador francês Henri Marrou. Diz Marrou que:
[…] se após a vida terrestre do Verbo encarnado que constitui o centro como o seu núcleo, a história humana continua a se desenrolar, é porque o tempo é ainda necessário para permitir o pleno crescimento do Corpo místico de Cristo, a construção até o seu acabamento da Cidade de Deus – cabe a São Paulo fazer a síntese das duas imagens e dizer 'para a construção do Corpo de Cristo'. A história alcançará seu termo quando a obra começada na Encarnação estiver plenamente realizada, e, assim, plenamente terminado este mistério da vontade benevolente de Deus, isto é […], reunir, recapitular todas as coisas em Cristo.” [1] “[...] o Corpo Místico de Cristo é o verdadeiro sujeito da história, assim como o acabamento de seu crescimento é a razão de ser e a medida do tempo que ainda corre.”[2]
O “Corpo místico de Cristo”, isto é, a comunidade dos homens em Cristo, a “Ecclesiae”, a Igreja, continua a história, segundo os teólogos da história, enquanto história da Salvação, e não como uma mera história, sem sentido aparente.
NOTAS
[1] MARROU, Henri. Teologia da História – O sentido da caminhada da humanidade através da temporalidade. Rio de Janeiro: VOZES Editora, 1989. p. 35.
[2] Idem. p. 35.