Os estádios da existência de Kierkegaard
O filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) elaborou um esquema triádico que é o fundamento de sua obra e uma de suas maiores contribuições para a história da filosofia: a teoria dos três estádios ou modos de existência - o estádio estético, o ético e o religioso. Além dos três estádios, Kierkegaard identifica duas zonas-limite: a ironia e o humor.
1) O estádio estético, no qual o homem se abandona à imediatidade, não há uma aceitação consciente de um ideal. A busca pelo prazer imediato faz com que o esteta atribua maior importância à possibilidade de realização do que à própria realização. São três os modos de ser do estádio estético: a sensualidade, representada por Don Juan; a dúvida, por Fausto; o desespero, pelo judeu errante Ahasverus.
2) O estádio ético, no qual o homem submete-se à lei moral e opta por si mesmo. Ao falar do estádio ético, Kierkegaard fala do marido fiel: o modo de vida ético é o modo de vida do indivíduo que é correto com a família e trabalhador. Trata-se não mais do indivíduo que busca o prazer, trata-se do indivíduo que ordena sua vida em relação ao cumprimento do dever. Diz Kierkegaard: “A esfera ética é uma esfera de transição, que todavia não é atravessada de uma vez por todas...” (Kierkegaard, Stadi sul cammino della vita, p. 693). Ela oferece uma forma de preparação para o estádio religioso.
3) O estádio religioso: o último estádio proposto por Kierkegaard, é o que vai além do estádio ético e é o ponto mais alto a que se pode chegar; é, portanto, o estádio onde se efetiva a realização do indivíduo. Se, no estádio ético, o homem pode transgredir uma lei feita por homens, no estádio religioso, o erro é contra leis estabelecidas por Deus; portanto, significa pecado. O estádio religioso suspende o estádio ético quando o indivíduo estiver diante de uma escolha que implica em uma finalidade maior. O exemplo que Kierkegaard oferece é o de Abraão que aceita sacrificar seu filho para que se cumpra a promessa da divindade na qual ele acredita.
Como toda a sua obra, a teoria dos estádios foi provavelmente escrita a partir da autobiografia do autor: atraído pelos prazeres da vida social, Kierkegaard abandona os estudos na juventude para entregar-se aos prazeres. Pode-se dizer que ele estava vivendo esteticamente. Depois, o amor por Régine Olsen e a necessidade de romper o noivado porque acreditava que isso iria contra sua atividade filosófica: podemos identificar aqui o confronto entre a existência ética e a existência religiosa.
Por meio da sua obra, Kierkegaard pretendia mostrar todas as possibilidades que o indivíduo encontra em sua existência. O indivíduo é levado a escolher entre elas, pois cada estádio é qualitativamente diferente dos outros, ordenados por paixões e valores singulares. O indivíduo que está em um estádio, só permanece nele por uma escolha existencial; do mesmo modo, ele é livre para optar por outro estádio. Diz ele: “A história da vida individual se desenrola em um movimento que vai de estádio em estádio e cada um é posto por um salto” Kierkegaard, O. C. VII, p. 210.
No entanto, o salto entre um estádio e outro não é necessário e sim contingente: o salto é uma possibilidade, que se tornará real apenas se o indivíduo escolher.
Como o filósofo dinamarquês usa recurso do pseudônimo para escrever suas obras, é muito difícil conceituar o que ele entendia por “estádio” de forma sistemática, isto é, como se ele tivesse apresentado sua ideia da forma como Hegel apresentou o conceito de “Absoluto”, por exemplo. Suas ideias não partem de premissas e apresentam definições muitas vezes ambíguas, além de não apresentarem conclusões.
Embora haja essa dificuldade conceitual, podemos dizer que a teoria dos estádios kierkegaardianos são modos de estar no mundo; ou seja, a descrição dos diversos modos de existência pode ser entendida como uma fenomenologia existencial. Para Kierkegaard, o homem é um ser temporal, mas tem a eternidade como objetivo de sua existência. Por isso, ele pode escolher entre ficar no estádio temporal, apresentar uma inclinação pelo eterno ou aceitar o chamado do eterno (Cf. Malantschuk Apud Reichmann, Textos selecionados, p. 365-366).
A teoria dos estádios não é interpretada como se houvesse uma evolução entre eles, como se fossem sucessivos no tempo. Não há uma relação cronológica, por exemplo. O homem não pertence necessariamente ao estádio estético na juventude e ao religioso na velhice. A única relação entre os estádios e o tempo é que eles não podem ser vividos simultaneamente; eles se excluem reciprocamente, como alternativas que se apresentam ao homem. O “salto” entre um e outro pressupõe uma decisão livre que o homem pode tomar.
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