Poesia de Caio Fernando Abreu

Romancista, contista, cronista e... poeta. Caio Fernando Abreu deixou registrado em diários vários poemas que seriam publicados dezessete anos após a sua morte.
Da exposição Caio Fernando Abreu: Doces Memórias. Imagem gentilmente cedida por Márcia de Abreu Jacintho

Certamente você já ouviu falar bastante em Caio Fernando Abreu. O escritor, um dos mais queridos e populares da literatura brasileira, sempre é lembrado nas redes sociais, fato que acabou divulgando sua produção literária entre os mais jovens, gente que ainda nem tinha nascido quando Caio faleceu, em fevereiro de 1996. A linguagem e a temática transgressoras fizeram do escritor um ícone da cultura pop e um dos mais importantes e originais representantes da literatura brasileira contemporânea.

Quando morreu, Caio deixou sob os cuidados da família vários diários contendo anotações e poemas inéditos. Optou por não publicá-los, pois julgava-os medíocres, bem inferiores às suas crônicas, contos e romances. Claro que a autocrítica severa é fruto do perfeccionismo do escritor, já que a qualidade literária dos manuscritos é incontestável. Por serem manuscritos, outros datilografados, alguns poemas contêm rasuras e até mesmo palavras ilegíveis, mas que não diminuem a relevância do material, sobretudo para os fãs e pesquisadores da obra de Caio.

Para que você conheça um pouco mais sobre a pequena, mas interessante obra poética do escritor, o Mundo Educação vai mostrar para você a poesia de Caio Fernando Abreu em cinco poemas, publicados no livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Boa leitura!


A máquina de escrever, companhia inseparável de Caio, tinha nome: Virginia Woolf. Imagem gentilmente cedida por Márcia de Abreu Jacintho

Breve memória
(13 de outubro de 1969)

De ausências e distâncias te construo

amigo

amado.

E além da forma

nem mão

nem fogo:

meu ser ausente do que sou

e do que tenho, alheio.

Na dimensão exata de teu corpo

cabe meu ser

cabe meu voo mais remoto

cabem limites, transcendências.

Na dimensão do corpo que tu tens

e que eu não toco

cabe o verso torturado

e um espesso labirinto de vontades.

Faz anos navego o incerto

Faz anos navego o incerto.

Não há roteiros nem portos.

Os mares são de enganos

e o prévio medo dos rochedos

nos prende em falsas calmarias.

As ilhas no horizonte, miragens verdes.

Eu não queria nada além

de olhar estrelas

como quem nada sabe

para trocar palavras, quem sabe um toque

com o surdo camarote ao lado

mas tenho medo do navio fantasma

perdido em pontas sobre o tombadilho

dou a face e forma a vultos embaçados.

A lua cheia diminui a cada dia.

Não há respostas.

Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração

como uma âncora.


Publicado pela Editora Record, o livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu reúne a obra poética do escritor

Ninguém saberá da secura de nossos olhos
(20 de dezembro de 1975)

Ninguém saberá da secura de nossos olhos

da dureza de nossa boca ninguém saberá

do fio das unhas da dor no dente

do sangue guardado no fundo da gaveta

 

ninguém adivinhará os jardins atrás do muro fechado

ninguém quebrará o ferro do portão

ninguém violentará o secreto

ninguém te tocará profundamente

ninguém te saberá

ninguém.

 

Por isso olhamos as nuvens

sentados ao vento que não sopra

enquanto os balanços rangem

os rádios cantam

e a rua intocável como um quadro

pintado por outro.

 

Por isso olhamos em volta

e o que se passa além de nossa (uma palavra ilegível)

não nos soluciona

(ninguém sabe

ninguém saberá).

 

O caule quebrado do girassol

o livro de Toynbee sobre os degraus

a caneta riscando o papel

as nuvens

a tarde

a rua

 

o medo.

 

Curtume

Nenhum poema libertário

libera a tarde do gigantesco inútil

derramado em copos de cinza

sobre as paredes sujas.

 

Nenhum poema inflamado

desinflamaria o pus da paisagem mutilada

pelas chaminés vomitando fuligem

sem parar.

 

Nenhum poema possível

possibilita a transmutação do nada

curvado sobre cada uma das máquinas

em toques secos.

 

Nenhum poema pirado

pararia a voragem estúpida

gerando monstros coloridos

em papel couché.

 

Nenhum poema solto

soltaria outra vez as pandorgas perdidas.

Preso na gaveta, solto no vento: nenhum poema.

Nem mesmo este.

 

Invernal

Quero afundar no meu canto

até o fundo mais fundo

onde só há o eu sozinho

 

amor, terreno vedado

para os passos que tentei.

 

Quero morrer no meu canto

como morrem os elefantes

como adoecem os cães

completamente escondidos

 

amor, espaço minado

cheio de cacos de vidro

 

meu rosto tem sombras duras

minhas mãos têm gestos duros

seus olhos têm vista dura

 

amor, espinho cravado

que ninguém tirou de mim

 

estou no fundo do poço

em pleno meio de agosto

nenhum fiapo de luz

iluminando meu canto

 

amor, espelho quebrado

e sete anos de azar.

Publicado por Luana Castro Alves Perez
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