Liberalismo de Tocqueville
Entre as correntes políticas e filosóficas mais importantes dos séculos XIX e XX está, sem sombra de dúvidas, o liberalismo. O segmento clássico dessa corrente remonta ao século XVIII e tem nas reflexões sobre a economia de mercado, desenvolvidas nas ilhas britânicas, sua expressão mais nítida. Há outros segmentos, que se espalharam pelo continente europeu a partir do início do século XIX e caracterizaram-se tanto pela ação política quanto pela reflexão teórico-conceitual. Esse é o caso do francês Alexis de Tocqueville.
Tocqueville (1805-1859), no terreno da política, ficou notório por ter sido deputado da França na época da onda revolucionária de 1848, que resultou na abdicação do rei Luís Felipe. Como liberal, Tocqueville prezava pela democracia institucional e opunha-se ferrenhamente aos levantes socialistas que inflamaram as ruas de Paris e de outras cidades naquele ano. As reflexões desse período da história europeia ficaram registradas em seu livro “Lembranças de 1848”.
No terreno da reflexão teórica e conceitual sobre democracia e tradição liberal, as maiores contribuições de Tocqueville estão nas obras “O Antigo Regime e a Revolução”, de 1856, que trata da passagem da França de Luís XVI para a França revolucionária da década de 1790, e “Democracia na América”, escrito quando era jovem e publicado em 1835, que trata de sua viagem aos Estados Unidos da América. Nesses livros é possível perceber reflexões rigorosas sobre os conceitos de revolução, de individualismo, de liberdade e de democracia – fundamentais para se entender as instituições políticas pós-Revolução Francesa e pós-Independência dos Estados Unidos.
O diplomata e ensaísta José Guilherme Merquior, em sua obra “O Liberalismo – Antigo e Moderno”, traça uma análise dos conceitos usados por Tocqueville, como a diferença estabelecida entre “egoísmo” e “individualismo”:
Tocqueville estabeleceu uma distinção entre egoísmo e individualismo. Egoísmo, disse ele, é uma categoria moral, é um vício. Individualismo é um conceito sociológico que denota uma falta, não de virtude per se, mas de virtude pública ou cívica. É uma disposição pacífica que separa uma pessoa de seus concidadãos, trocando a sociedade pelo pequeno grupo da família e de amigos. Enquanto o egoísmo se encontra em todas as épocas históricas, o individualismo é uma característica da sociedade democrática. [1]
Vê-se a importância que Tocqueville dá ao conceito de individualismo como categoria específica de uma época histórica, a da sociedade democrática, baseada, em seu início, em ideias liberais e em instituições representativas caracterizadas pela ação do sufrágio (o voto). Em outra passagem, Merquior destaca as reflexões de Tocqueville sobre sua estadia na América:
Em sua viagem à América, Tocqueville admirou o vigor cívico das reuniões municipais na Nova Inglaterra. Mas nelas divisou antes um corretivo do que um reflexo de democracia. A questão pode ser facilmente resolvida se tivermos em mente o significado da palavra democracia em Tocqueville. Algumas vezes, ele empregou o termo em seu sentido político normal, de um sistema representativo fundado num amplo sufrágio. Mas, com mais frequência, o empregou como um sinônimo para sociedade igualitária, coisa com que ele não designava uma sociedade de iguais, mas uma sociedade em que a hierarquia já não era a regra do princípio aceito da estrutura social. [2]
A “democracia” em algumas regiões dos Estados Unidos, vista por Tocqueville, tinha um feito diferente do que normalmente se via na Europa. As assembleias municipais (cujo eco ainda se vê nos votos distritais das eleições americanas) impressionaram-no muito e ajudaram-no a pensar o conceito de sociedade democrática em outros termos, mais amplos.
FONTE
[1] MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. Trad. Henrique de Araújo Mesquita. São Paulo. É Realizações, 2014. p. 119.
[2] Idem. p. 119-20.