Poesia de Caio Fernando Abreu
Certamente você já ouviu falar bastante em Caio Fernando Abreu. O escritor, um dos mais queridos e populares da literatura brasileira, sempre é lembrado nas redes sociais, fato que acabou divulgando sua produção literária entre os mais jovens, gente que ainda nem tinha nascido quando Caio faleceu, em fevereiro de 1996. A linguagem e a temática transgressoras fizeram do escritor um ícone da cultura pop e um dos mais importantes e originais representantes da literatura brasileira contemporânea.
Quando morreu, Caio deixou sob os cuidados da família vários diários contendo anotações e poemas inéditos. Optou por não publicá-los, pois julgava-os medíocres, bem inferiores às suas crônicas, contos e romances. Claro que a autocrítica severa é fruto do perfeccionismo do escritor, já que a qualidade literária dos manuscritos é incontestável. Por serem manuscritos, outros datilografados, alguns poemas contêm rasuras e até mesmo palavras ilegíveis, mas que não diminuem a relevância do material, sobretudo para os fãs e pesquisadores da obra de Caio.
Para que você conheça um pouco mais sobre a pequena, mas interessante obra poética do escritor, o Mundo Educação vai mostrar para você a poesia de Caio Fernando Abreu em cinco poemas, publicados no livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Boa leitura!
A máquina de escrever, companhia inseparável de Caio, tinha nome: Virginia Woolf. Imagem gentilmente cedida por Márcia de Abreu Jacintho
Breve memória
(13 de outubro de 1969)
De ausências e distâncias te construo
amigo
amado.
E além da forma
nem mão
nem fogo:
meu ser ausente do que sou
e do que tenho, alheio.
Na dimensão exata de teu corpo
cabe meu ser
cabe meu voo mais remoto
cabem limites, transcendências.
Na dimensão do corpo que tu tens
e que eu não toco
cabe o verso torturado
e um espesso labirinto de vontades.
Faz anos navego o incerto
Faz anos navego o incerto.
Não há roteiros nem portos.
Os mares são de enganos
e o prévio medo dos rochedos
nos prende em falsas calmarias.
As ilhas no horizonte, miragens verdes.
Eu não queria nada além
de olhar estrelas
como quem nada sabe
para trocar palavras, quem sabe um toque
com o surdo camarote ao lado
mas tenho medo do navio fantasma
perdido em pontas sobre o tombadilho
dou a face e forma a vultos embaçados.
A lua cheia diminui a cada dia.
Não há respostas.
Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração
como uma âncora.
Publicado pela Editora Record, o livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu reúne a obra poética do escritor
Ninguém saberá da secura de nossos olhos
(20 de dezembro de 1975)
Ninguém saberá da secura de nossos olhos
da dureza de nossa boca ninguém saberá
do fio das unhas da dor no dente
do sangue guardado no fundo da gaveta
ninguém adivinhará os jardins atrás do muro fechado
ninguém quebrará o ferro do portão
ninguém violentará o secreto
ninguém te tocará profundamente
ninguém te saberá
ninguém.
Por isso olhamos as nuvens
sentados ao vento que não sopra
enquanto os balanços rangem
os rádios cantam
e a rua intocável como um quadro
pintado por outro.
Por isso olhamos em volta
e o que se passa além de nossa (uma palavra ilegível)
não nos soluciona
(ninguém sabe
ninguém saberá).
O caule quebrado do girassol
o livro de Toynbee sobre os degraus
a caneta riscando o papel
as nuvens
a tarde
a rua
o medo.
Curtume
Nenhum poema libertário
libera a tarde do gigantesco inútil
derramado em copos de cinza
sobre as paredes sujas.
Nenhum poema inflamado
desinflamaria o pus da paisagem mutilada
pelas chaminés vomitando fuligem
sem parar.
Nenhum poema possível
possibilita a transmutação do nada
curvado sobre cada uma das máquinas
em toques secos.
Nenhum poema pirado
pararia a voragem estúpida
gerando monstros coloridos
em papel couché.
Nenhum poema solto
soltaria outra vez as pandorgas perdidas.
Preso na gaveta, solto no vento: nenhum poema.
Nem mesmo este.
Invernal
Quero afundar no meu canto
até o fundo mais fundo
onde só há o eu sozinho
amor, terreno vedado
para os passos que tentei.
Quero morrer no meu canto
como morrem os elefantes
como adoecem os cães
completamente escondidos
amor, espaço minado
cheio de cacos de vidro
meu rosto tem sombras duras
minhas mãos têm gestos duros
seus olhos têm vista dura
amor, espinho cravado
que ninguém tirou de mim
estou no fundo do poço
em pleno meio de agosto
nenhum fiapo de luz
iluminando meu canto
amor, espelho quebrado
e sete anos de azar.