Dogmatismo

Dogmatismo é, acima de tudo, uma postura, mas pode ser também uma doutrina (ou um conjunto de doutrinas). A postura dogmática defende que existem certos postulados que estão fora do alcance da crítica. Isso significa que algumas posições — morais, epistemológicas ou religiosas — simplesmente não cabem no espectro da crítica e do questionamento. Algumas posições seriam eternas, imutáveis e intransigentemente inquestionáveis. Para um cristão convicto pela fé, por exemplo, a existência de Deus é um dogma.

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O que é dogmatismo filosófico?

A posição dogmática sempre trabalhará com a noção de verdade eterna e absoluta. Isso se dá no campo dos costumes, mas também pode ocorrer no campo do conhecimento. A lógica, por exemplo, é uma área do conhecimento tão exata quanto a matemática, aliás, ela explica muito do que é feito na matemática. A lógica é um campo do conhecimento que podemos chamar de dogmático, pois está fundamentada em princípios tão sólidos quanto a própria racionalidade. Dessa maneira, quando existem princípios inabaláveis que definem uma área do saber, podemos chamar essa área de dogmática.

Os dogmas podem ser grilhões que aprisionam o conhecimento e impedem seu avanço.

Quando a lógica abre brecha para ser questionada, isso não demonstra que essa ciência não é perfeitamente dogmática, mas que há um provável erro metodológico do pensador que estava operando-a. Nessas áreas mais rígidas do conhecimento, a posição dogmática não é uma simples questão de convicção do sujeito do conhecimento, mas algo inevitável. Os resultados matemáticos, por exemplo, são exatos e é impossível que eles sejam questionados a menos que, como no caso da lógica, haja algum erro metodológico ou erro operacional daquele que conduz o cálculo.

Também chamamos dogmáticos aqueles filósofos que apresentam suas teorias como verdades últimas e definitivas sobre temas. Muitas vezes, o dogmatismo delas é desmascarado por filósofos posteriores, mas outras vezes não. É o caso de Aristóteles, de Platão, do pensador escolástico Guilherme de Ocham ou de René Descartes. Algumas teorias desses pensadores resistem ao tempo e são até hoje debatidas por acadêmicos e pensadores em geral.

Quando o dogmatismo adentra a esfera comportamental, podemos ter problemas. É fácil defender e demonstrar a exatidão das ciências exatas, ficando fácil, portanto, defender uma posição dogmática nessas ciências. Os costumes, a moral e a política estão embasados em outros processos: não há uma rigidez e exatidão naquilo que é produzido nesses campos, pois tudo é fruto de interações e do acaso, o que impede a existência de um cálculo ou regra que torne as experiências exatas.

O que é dogmatismo e ceticismo

Essas duas posturas (a dogmática e a cética) são diametralmente opostas. A escola cética surgiu entre as escolas gregas helenísticas e defende que não há meio de chegar-se a um conhecimento verdadeiro e seguro, sendo melhor, portanto, abster-se da vontade de chegar-se à verdade.

O filósofo francês René Descartes reinventou o ceticismo.

Segundo o filósofo brasileiro Plínio Junqueira Smith, um dos maiores especialistas em ceticismo do Brasil, “os céticos são aqueles que mostram, por meio de uma argumentação que lhes é peculiar, que não há nenhuma garantia de que conhecemos aquilo que alegamos conhecer. Segundo eles, não sabemos nada, não temos certeza de nada e podemos colocar tudo em dúvida; sequer sabemos que nada sabemos”|1|. Essa postura cética inaugura uma das bases de ancoragem do pensamento filosófico. Enquanto temos os filósofos dogmáticos, que afirmam verdades, temos os filósofos céticos, que questionam supostas verdades.

Segundo Plínio Smith, “refutar o ceticismo tornou-se uma obsessão dos filósofos dogmáticos”|1|, isso porque a postura cética aniquila qualquer possibilidade dogmática. Os dogmáticos tentam, então, mostrar que o ceticismo não pode condizer com a realidade por não levar a lugar algum. É certo que o ceticismo antigo, fundado pelo filósofo Pirro na Grécia Antiga, parece estagnar o pensamento. Há uma variante moderna de ceticismo, centrada na obra filosófica do francês René Descartes, que muda a perspectiva cética e ergue um ceticismo construtivo.

Para Descartes, era necessário duvidar-se de tudo, manter-se uma postura cética sobre tudo no mundo. Isso era, no entanto, uma artimanha intelectual para chegar-se ao ponto defendido por Descartes: duvidar para pensar, pensar para chegar a um conhecimento verdadeiro.

Dogmatismo religioso

As religiões são compostas por dogmas. O nível de tolerância de cada fiel e de cada fé religiosa varia, mas todas as religiões afirmam dogmas que, ao menos na lógica interna de seus funcionamentos, operam como verdades absolutas. A santíssima trindade que une Pai, Filho e  Espírito Santo para os cristãos, a sabedoria sagrada do profeta Maomé para os muçulmanos ou a força que emana dos orixás para os candomblecistas são exemplos de dogmas religiosos.

As religiões necessitam de dogmas para funcionarem. É no interior das regras e preceitos religiosos que entendemos como isso se torna importante para a manutenção da fé. No entanto, como a postura dos fiéis varia, temos pessoas mais ou menos dogmáticas. Como as regras religiosas também variam, temos religiões mais ou menos dogmáticas. Dentro de grandes religiões, como o cristianismo, temos variadas vertentes que também apresentam postura mais ou menos dogmática em relação à doutrina, às escrituras sagradas e à tradição.

Dentro do catolicismo, temos vertentes mais progressistas, como a teologia da libertação, que tenta unir duas coisas há muito tempo separadas: socialismo e catolicismo; também existem vertentes mais conservadoras, que tendem a caminhar mais para o dogmatismo, como a linha tradicionalista; existem ainda as linhas que unem elementos dogmáticos da liturgia católica a elementos não dogmáticos, como a renovação carismática e os neoconservadores. 

O papa Francisco pode ser considerado uma liderança progressista que reviu alguns dogmas da Igreja Católica. [1]

Ainda dentro do cristianismo, há vertentes protestantes extremamente dogmáticas por afirmarem os valores dos primeiros reformadores, Martinho Lutero e João Calvino. Há também vertentes que se afastam da tradição, mas criam uma lógica litúrgica altamente dogmática dentro de si mesmas. Temos, nessa segunda classificação, os pentecostais, os neopentecostais e os pentecostais reformados. Se compararmos as vertentes, pode ser muito difícil entender o dogmatismo de cada uma, pois elas são bem diferentes umas das outras.

Os protestantes tradicionais têm cultos mais moderados, enquanto pentecostais têm um ritual litúrgico mais agitado, com palmas, louvores e pessoas que dizem falar línguas (uma espécie de comunicação que, na tradição de certas religiões, manifesta-se como um vínculo intermediário entre as pessoas e Deus). Os pentecostais reformados, por sua vez, resgatam muitos elementos católicos, adotam o colarinho clerical, celebram o Espírito Santo, são mais moderados em seus cultos, mas adotam elementos não dogmáticos dos protestantes tradicionais, como a oração em línguas estranhas.

Isso mostra que o dogmatismo, sobretudo o religioso, depende muito da perspectiva em questão. Os dogmas estão, na maioria das vezes, centrados nas lógicas internas das religiões, não significando necessariamente que uma religião mais sectária seja mais dogmática e que uma vertente religiosa mais progressista seja menos dogmática.

Veja mais: Intolerância religiosa – preconceito muitas vezes cometido por religiosos dogmáticos

Dogmatismo no senso comum

O conhecimento de senso comum é não testado e não validado por qualquer regra racional. Isso não significa que esse tipo de conhecimento sempre estará errado, mas que apenas não é possível confiar-se cegamente nele. Sendo assim, quando o senso comum é adotado de maneira dogmática, pode haver um problema: enxergar o mundo de uma maneira desvirtuada do que ele realmente é.

Nota

|1| SMITH, P. J. Ceticismo. Col. Filosofia passo a passo, vol. 35. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

Crédito da imagem

[1] Gabriel Andrés Trujillo Escobedo / Commons

Publicado por Francisco Porfírio
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