Negras forras e o comércio urbano colonial
O processo de colonização ocorrido no Brasil foi mais que a formação de uma civilização destinada à produção de mercadorias de exportação para os mercados europeus. No aspecto social da colônia portuguesa na América, desenvolveu-se um mercado interno que garantia a realização de trocas comerciais, principalmente nos espaço urbanos, além de proporcionar a integração entre diversas localidades da colônia.
A diversidade de funções gerou ainda outras camadas sociais, principalmente nas cidades portuárias e ligadas à mineração, dedicadas ao comércio varejista. Apesar das funções comerciais serem executadas em sua maioria por homens livres, mulheres negras forras cumpriram um importante papel nesse aspecto da vida econômica e social no período colonial brasileiro.
Geralmente a alforria era conseguida após conseguirem acumular quantias em dinheiro que garantiam a liberdade, principalmente quando realizavam a função de “escravas de ganho”, exercendo serviços oferecidos nas cidades, que eram pagos em dinheiro. A descoberta dessas situações tem mudado a ênfase da historiografia brasileira na análise do escravismo no Brasil.
Historiadores estão se dedicando a analisar as situações de trabalho dos escravos africanos que não estavam necessariamente ligadas ao trabalho realizado apenas na lavoura, indicando uma diversificação de funções por parte da força de trabalho africana.
O exercício das funções de comércio varejista por parte das mulheres africanas no Brasil vem sendo apontado também como decorrência da transposição de uma atividade que exerciam anteriormente em solo africano, principalmente na região centro-ocidental do continente, onde em várias etnias cabia às mulheres a atividade comercial varejista. Dessa forma, a prática comercial ligada à divisão social do trabalho de acordo com o sexo seria uma permanência econômica e cultural mantida pelas africanas no Brasil.
É interessante notar alguns conflitos relacionados a essas práticas comerciais. Nas áreas de mineração, as atividades das africanas escravizadas podiam gerar conflitos com proprietários de escravos, principalmente com a venda de quitutes e aguardentes nas proximidades de áreas mineradoras de Minas Gerais. A presença das mulheres alforriadas nas proximidades das minas alterava a ordem dos trabalhos.
Por outro lado, o comércio realizado pelas negras era apontado como fonte de desvio de parte do ouro que seria enviado aos proprietários como resultado do trabalho dos escravos. Os proprietários denunciavam ainda que a ação levaria à diminuição do montante de ouro destinado à cobrança de impostos, pois a venda dos quitutes e aguardente tirava o ouro do ciclo pretendido pela coroa, fugindo ao controle estatal e diminuindo o valor que deveria ser tributado.
Essa prática gerou ainda outras consequências sociais. O dinheiro acumulado nesse serviço comercial proporcionava a compra de escravas e escravos por parte das mulheres alforriadas. Ele era também empregado em atividades comerciais, inserindo-se em um circuito econômico que a historiografia vem trabalhando nos últimos tempos, que é a formação do mercado interno colonial e suas consequências para a formação da sociedade brasileira.
Assim, elas transformavam-se em sinhás negras, em proprietárias de escravas, como é possível perceber pelos inventários de heranças deixadas por essas mulheres, que estão documentados em arquivos da época, indicando também o tipo de fonte utilizada para conhecer esse aspecto da vida colonial brasileira.
Apesar de acumularem algum dinheiro e de explorarem a força de trabalho de outras pessoas, dificilmente tal situação alterava a condição social dessas mulheres perante os estratos superiores da população colonial. Elas continuavam a carregar o estigma de origem, de que eram africanas escravizadas, sofrendo toda a sorte de preconceitos decorrentes dessa situação.