Os relatos de Hans Staden e Anthony Knivet sobre o Brasil
Na época da Expansão Marítima Europeia, que se tornou intensa nos séculos XVI e XVII, muitas contendas políticas e religiosas aconteciam em terra firme no “Velho Mundo”. Enquanto isso, o “Novo Mundo” (as Américas, recém-descobertas) tornava-se um receptáculo dessas contendas, tornando-se alvo de invasores, mercenários, corsários e piratas. Muitos dos aventureiros que viajavam com as expedições marítimas, fossem elas oficiais ou lideradas por piratas, deixaram seus relatos. No caso dos que estiveram no Brasil, os relatos são impressionantes e constituem um material imprescindível para pensar o choque entre a cultura europeia e a nativa, ou indígena.
Entre esses relatos, os mais emblemáticos são aqueles que descrevem a prática do canibalismo entre algumas das tribos que habitavam o litoral brasileiro, como a tupinambá e a tupiniquim. O alemão Hans Standen (1525-1579) foi um desses aventureiros que presenciaram o canibalismo, quando esteve sob a custódia dos tupinambás, além de ter participado também de batalhas contra franceses e índios. Standen legou à posteridade o relato de suas experiências por meio de uma obra cujo longo título (que começa com: “História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens...”) é geralmente abreviado em “Duas Viagens ao Brasil”, publicada em 1557.
O relato de Staden teve grande impacto nas cortes europeias e logo atingiu o imaginário popular e a reflexão filosófica. Um dos filósofos que se dedicaram a pensar a prática do canibalismo dos índios brasileiros foi Michel De Montaigne (1533-1592), que, apesar de não ter conhecido o continente americano, valeu-se de relatos como os de Standen para compor sua reflexão.
Além de Standen, o francês Anthony Knivet (1560-1649) também acabou se tornando refém de índios no litoral brasileiro, no fim do século XVII. Knivet viajava com o célebre corsário Thomas Cavendish (1560-1592) e foi abandonado pela tripulação na costa brasileira. Knivet esteve entre colonos portugueses que o capturaram e que, por sua vez, foram capturados por índios da tribo tupiniquim. Sua obra, cujo título, também longo, é As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavadish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens, narra com detalhes as suas aventuras e, de forma ainda mais acintosa, o momento em que os doze portugueses que com ele estavam foram mortos e devorados pelos indígenas.
A crueza de detalhes das mortes é impressionante. Em dado momento, Knivet discorre sobre o exato instante em que um português é interpelado por um índio, que diz a ele: 'Estás me vendo? Sou aquele que matou muitos do teu povo e que vai te matar.' E prossegue:
Depois de ter dito isso, ficou atrás do português e bateu-lhe na nuca de tal forma que o derrubou no chão e, quando ele estava caído, deu-lhe mais um golpe que o matou. Pegaram então um dente de coelho, começaram a retirar-lhe a pele e carregaram-no pela cabeça e pelos pés até as chamas da fogueira. Depois disso, esfregaram-no todo com as mãos de modo que o que restava de pele saiu e só restou a carne branca. Então cortaram-lhe a cabeça, deram-na ao jovem que o tinha matado e retiraram as vísceras e deram-nas às mulheres. [1]
Para os canibais, matar o estrangeiro inimigo (sobretudo o português) tinha um viés maior do que a vingança; tinha um viés de apropriação ritual de suas características e também assumia um caráter festivo, como também pode ser observado na continuação da citação:
Em seguida, o desmembraram pelas juntas: primeiro as mãos, depois os cotovelos e assim o corpo todo. Mandaram a cada casa um pedaço e começaram a dançar enquanto todas as mulheres preparavam uma enorme quantidade de vinho. No dia seguinte ferveram cada junta num caldeirão de água para que as mulheres e as crianças tomassem do caldo. Durante três dias nada fizeram a não ser dançar e beber dia e noite. Depois disso mataram outro da mesma maneira que lhes contei, e assim foram devorando todos menos eu. [2]
Esses e outros relatos, pela riqueza de detalhes e pela crueza como foram elaborados, têm importância fundamental para se conhecer as primeiras décadas do período colonial brasileiro.
NOTAS
[1] KNIVET, Anthony. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavadish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens. Sheila Hue (org.); Vivien Lessa de Sá (trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. p. 119-120.
[2] Idem. p. 120.