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Poesia de Ferreira Gullar

A obra de Ferreira Gullar é indispensável para a compreensão da poesia social no país e está imortalizada em diversos gêneros.
Capa do livro Lightning. Edição em inglês do livro Relâmpagos, de Ferreira Gullar. Editora Cosac & Naify
Capa do livro Lightning. Edição em inglês do livro Relâmpagos, de Ferreira Gullar. Editora Cosac & Naify

Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, nasceu na cidade de São Luís, no Maranhão, no dia 10 de setembro de 1930. Tomou posse no ano de 2014, aos 84 anos, da cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras. Sua obra, indispensável para a compreensão da poesia social no país, está imortalizada em diversos gêneros, entre eles ensaio, memórias, biografia, crítica e, principalmente, na poesia, gênero no qual se destacou. O poeta morreu aos 86 anos de idade, no Rio de Janeiro, no dia 04 de dezembro de 2016.

Um dos fundadores do neoconcretismo brasileiro, Ferreira Gullar foi um dos principais representantes da poesia social. Seus poemas foram marcados pela alta tensão psíquica e ideológica e pelo engajamento de quem, nos anos de 1960, foi militante do Partido Comunista Brasileiro e exilado político em diferentes países, entre eles a antiga União Soviética, Argentina e Chile. Posteriomente, afastou-se do socialismo e, consequentemente, da poesia social. Dedicou-se à poesia, análises e reflexões sobre artes plásticas, além de contribuir como colunista do jornal Folha de S. Paulo.

Para que você conheça melhor um dos principais poetas contemporâneos da Literatura brasileira, o Mundo Educação selecionou cinco poemas de Ferreira Gullar para você mergulhar no universo do poeta do cotidiano, da carência e do desejo. Esses cinco poemas vão mostrar para você toda a força da poesia de quem fez dela um instrumento de conscientização social. Boa leitura!

A poesia de Ferreira Gullar

Um instante

Aqui me tenho
Como não me conheço
            nem me quis

sem começo
nem fim
         

          aqui me tenho
          sem mim

nada lembro
nem sei

?luz presente
sou apenas um bicho
        transparente

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:

fundo sem fundo. 

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão. 

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira. 

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta. 

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente. 

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem. 

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

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“(...) Traduzir uma parte/na outra parte/que é uma questão de vida ou morte/será arte?”
(...) Traduzir uma parte/na outra parte/que é uma questão de vida ou morte/será arte?” 

Não há Vagas

O preço do feijão 
não cabe no poema. O preço 
do arroz 
não cabe no poema. 
Não cabem no poema o gás 
a luz o telefone 
a sonegação 
do leite 
da carne 
do açúcar 
do pão 

O funcionário público 
não cabe no poema 
com seu salário de fome 
sua vida fechada 
em arquivos. 
Como não cabe no poema 
o operário 
que esmerila seu dia de aço 
e carvão 
nas oficinas escuras 

- porque o poema, senhores, 
   está fechado: 
   "não há vagas" 

Só cabe no poema 
o homem sem estômago 
a mulher de nuvens 
a fruta sem preço 

    O poema, senhores, 
    não fede 
    nem cheira

“(...) Nada acenderá de novo o lume que na carne das horas se perdeu(...)”
(...) Nada acenderá de novo o lume que na carne das horas se perdeu(...)” 

Extravio

Onde começo, onde acabo, 
se o que está fora está dentro 
como num círculo cuja 
periferia é o centro? 

Estou disperso nas coisas, 
nas pessoas, nas gavetas: 
de repente encontro ali 
partes de mim: risos, vértebras. 

Estou desfeito nas nuvens: 
vejo do alto a cidade 
e em cada esquina um menino, 
que sou eu mesmo, a chamar-me. 

Extraviei-me no tempo. 
Onde estarão meus pedaços? 
Muito se foi com os amigos 
que já não ouvem nem falam. 

Estou disperso nos vivos, 
em seu corpo, em seu olfato, 
onde durmo feito aroma 
ou voz que também não fala. 

Ah, ser somente o presente: 
esta manhã, esta sala. 

Madrugada

Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes

Publicado por Luana Castro Alves Perez
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