Cetamina
Cetamina é uma substância química derivada da fenilciclidina e que apresenta grande poder anestésico e analgésico, sendo então utilizada para esse fim. Além disso, possui diversas formas de administração e facilidade em ultrapassar a barreira hematoencefálica. A cetamina é composta por dois enantiômeros (isômeros ópticos), sendo que ambos possuem propriedades anestésicas.
A cetamina é segura, de difícil overdose, e vem também sendo estudada para ser utilizada no tratamento da depressão, pois tem facilidade em inibir efeitos adversos desse transtorno, inclusive pensamentos suicidas. Mesmo assim, apresenta alguns efeitos colaterais, os quais podem trazer complicações para pacientes cardíacos. A cetamina começou a ser desenvolvida na década de 1960, e em 1970 já estava disponível para uso em humanos.
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Resumo sobre cetamina
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A cetamina é um composto utilizado para fins medicinais, principalmente anestesia e analgesia.
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Apresenta-se como um pó branco, mas também é encontrada na forma de tabletes e ampolas.
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A cetamina pode ser administrada de diversas formas, sendo que a substância ultrapassa rapidamente a barreira hematoencefálica.
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A cetamina é feita de dois isômeros ópticos, enantiômeros, ambos com propriedades anestésicas.
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Além do uso anestésico, a cetamina vem sendo estudada para tratamento da depressão.
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Embora seja considerado um composto não letal, a cetamina apresenta diversos efeitos colaterais.
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A cetamina começou a ser desenvolvida na década de 1960, como um substituinte seguro para a fenilciclidina.
O que é cetamina?
A cetamina, 2-(2-clorofenil)-2-metilaminociclo-hexanona, de massa molecular igual a 238 u, é um composto utilizado para fins medicinais, com propriedades farmacológicas de destaque. É descrita como uma droga “única”, já que apresenta efeitos hipnóticos (sonolência), analgésicos (alívio da dor) e amnésicos (perda da memória recente), sendo que nenhuma outra droga produz esses três importantes fatores ao mesmo tempo.
Ela é comercializada, comumente, na forma de cloridrato de cetamina. Alguns nomes comerciais são: Ketalar (Pfizer), Ketaject (Phoenix Pharmaceuticals), Ketaset (Wyeth), Vetalar (Fort Dodge Animal Health), Cetamin (Syntec).
Fisicamente se apresenta como um pó branco, embora também possa estar na forma líquida (ampola) e em tabletes. A fórmula molecular é C13H16ClNO, com ponto de fusão entre 258 °C e 261 °C. É solúvel em água e bem solúvel em compostos lipofílicos, permitindo que seja administrada de diversas formas (intravenosa, intramuscular, oral, nasal, retal, subcutânea e epidural), também passando rapidamente pela barreira hematoencefálica.
Estruturalmente a cetamina se apresenta na forma de dois enantiômeros, por conta da presença do carbono quiral presente no anel de ciclo-hexanona. Como todos os pares enantioméricos, as duas formas apresentam as mesmas propriedades químicas e físicas, com a exceção da interação com o plano da luz polarizada: um desvia para a esquerda (levógiro, −), outro para a direita (dextrógiro, +). A ordem dos ligantes em relação ao carbono quiral é identificada na nomenclatura das estruturas, assim os isômeros são denominados S-cetamina e R-cetamina.
Clinicamente eles apresentam efeitos diferentes, além de afinidades diferentes para vários receptores, os quais também são opticamente ativos. Por exemplo, a S-(+)-cetamina apresenta poder anestésico, aproximadamente, três a quatro vezes maior que a R-(−)-cetamina.
Para que serve a cetamina?
A cetamina serve como um anestésico dissociativo, produzindo profunda analgesia e amnésia sem que haja diminuição das frequências cardíaca e respiratória. Assim, ainda hoje é utilizada como anestesia especializada, particulamente pediátrica, anestesia veterinária (principalmente em equinos) e em campos de combate.
Também apresenta papel no controle da dor, tanto para humanos quanto para animais. É um potente analgésico, podendo ser, por exemplo, administrado antes, durante ou depois de um processo operatório, assim minizando dores do pós-operatório. Em humanos, doses baixas de cetamina podem ser empregadas como anestésico local ou como co-analgésico, sendo particularmente eficientes para dores neuropáticas, as quais são de difícil tratamento. Também tem sido empregada para tratar dores agudas (embora, por conta dos efeitos psicóticos, seja necessária a administração de benzodiazepina), e no tratamento intensivo de casos de crises epilépticas prolongadas.
Há outros usos potenciais da cetamina em análise, como um antidepressivo (nos casos em que a condição é resistente ao tratamento), além do tratamento do vício em heroína e álcool.
Usos não medicinais da cetamina também já foram reportados, como uma droga para uso recreativo, desde a década de 1960. Após os anos 1990, o uso de cetamina estourou em festas de música eletrônica (raves), como um adulterante de tabletes de ecstasy.
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Como a cetamina é usada?
A cetamina pode ser administrada de diversas formas. Dessas, a administração intravenosa e a administração intramuscular apresentam maior biodisponibilidade (100% e 93%, respectivamente). No caso da administração oral, a cetamina apresenta menor biodisponibilidade (17%), pois é rapidamente metabolizada a norcetamina, mas apresenta mais efeito sedativo e menos efeito psicodélico.
De forma rápida, a cetamina é distribuída para o cérebro e outros tecidos altamente perfundidos. Quando administrada de forma intravenosa, os primeiros efeitos são sentidos em questão de segundos, enquanto eles são percebidos de 1 a 5 minutos se a administração for intramuscular, 5 a 10 minutos se inalado e 15 a 20 minutos se administrado oralmente.
Os efeitos duram de 30 a 45 minutos se a cetamina for injetada, 45 a 60 minutos se inalada e de 60 a 120 minutos se ingerida oralmente.
Cetamina e a depressão
Há mais de duas décadas, percebeu-se que a cetamina apresenta efeitos terapêuticos ao transtorno depressivo maior (TDM). A administração intravenosa de uma dose subanestésica de cetamina pode aliviar os sintomas da depressão em horas. Isso foi recebido com bastante entusiasmo pela comunidade científica, pois foi possível enxergar um caminho para o desenvolvimento de tratamento da TDM para pacientes que haviam respondido previamente para outros tratamentos.
A cetamina atua de forma diferente de grande parte dos antidepressivos aprovados, os quais correm o risco de ter uma baixa adesão por parte dos pacientes ou até mesmo não apresentarem resposta significativa, mesmo após diversas tentativas. Esse último grupo é conhecido por possuir a chamada depressão resistente ao tratamento (DRT) ou depressão refratária. Para eles, a cetamina também apresentou um efeito antidepressivo rápido, porém transitório.
De fato, a cetamina pode prover um efeito rápido, robusto, porém temporário ao TDM (e, inclusive, a transtorno de bipolaridade), além de ser promissora para pacientes que possuam pensamentos suicidas, com um célere efeito contra tais ideias. Contudo, salienta-se seu efeito temporário, uma vez que depois de uma ou duas semanas após a administração da dose os efeitos já não são tão eficazes. Assim sendo, apesar de promissora, os efeitos da cetamina ainda precisam ser melhor entendidos focando o tratamento agudo e de longa duração da TDM. É importante também entender melhor as questões relacionadas à segurança de seu uso, bem como determinar a melhor dosagem e a melhor forma de administração.
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Quais são os efeitos colaterais da cetamina?
Efeitos colaterais agudos mediante administração subanestésica de cetamina, principalmente por via intravenosa, são bastante comuns. Contudo, boa parte desses efeitos são leves e temporários, ocorrendo mais durante o período de infusão ou logo após a administração. Os efeitos colaterais que foram citados pela administração de cetamina foram:
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hipersalivação;
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hiperreflexia;
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hipertonicidade muscular;
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clônus (contrações musculares involuntárias) temporário;
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aumento da pressão intraocular;
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êmese (vômitos);
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irritação temporária na pele;
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agitação.
Quais são os perigos da cetamina?
A cetamina tem um grande intervalo terapêutico e, assim sendo, atingir a overdose é muito difícil, para não dizer impossível. Pacientes se recuperaram sem grandes problemas mesmo tendo recebido dosagens dez vezes maiores que o normal. A dose letal média (LD50, a dose necessária para levar a óbito 50% da população testada) observada em animais é, aproximadamente, 100 vezes a dose introvenosa humana geralmente administrada, além de ser 20 vezes maior que a dose intramuscular humana média.
Contudo, o uso contínuo causou problemas no trato urinário, como cistite. O uso abusivo de cetamina também está associado a sintomas gastrointestinais, tais como disfunção biliar, dor epigástrica (famosa dor na boca do estômago), além de lesão hepática. Além disso, usuários que a utilizam para fins recreativos apresentaram sintomas típicos de esquizofrenia, deficiência cognitiva, além de afetar o bem-estar psicológico.
Por quem a cetamina não deve ser usada?
Pessoas hipertensas devem ter cuidados e observações ao utilizarem a cetamina. Isso porque, após a administração da substância, pode haver aumentos de até 3 mmHg nas pressões sistólica e diastólica. Contudo, vê-se que a pressão retorna aos níveis iniciais após 70 minutos da aplicação.
Pacientes com insuficiência cardíaca ou histórico de acidente vascular cerebral devem ter atenção especial e, inclusive, considerar a utilização de um tratamento alternativo.
Quanto às mulheres grávidas, não há dados sobre a utilização de cetamina durante período gestacional, porém pesquisas com ratos demonstraram que uma combinação de cocaína com cetamina diminuiu o peso do feto. Mas, ainda assim, isso não ocorreu com a cetamina sozinha.
História da cetamina
A história da cetamina se inicia a partir da fenilciclidina, quimicamente similar à cetamina. A fenilciclidina foi sintetizada em 1956 por químicos da Parke Davis Companies e introduzida em prática clínica no ano de 1958. Porém, embora tal substância se mostrasse como um anestésico útil, ela apresentou diversos efeitos psicológicos adversos durante o período de recuperação. Por exemplo, sabia-se que a administração de fenilciclidina causava efeitos de embriaguez em roedores, delírio em cachorros, efeito cataleptoide em pombos e anestesia em macacos. Em seres humanos, causou um intenso e prolongado delírio, o que a fez indesejável para uso humano.
A cetamina, cujo nome era CI-581, é um dos 200 derivados de fenilciclidina que foram estudados posteriormente e se mostraram promissores. Ela foi desenvolvida em 1962 pelo consultor e químico orgânico da Parke Davis Companies, Calvin Stevens. Tais derivados deveriam apresentar poder anestésico semelhante, porém que causasse menos efeitos adversos após administração.
Assim, a cetamina seguiu para testes em seres humanos, sendo que a primeira dose anestésica ocorreu em 3 de agosto de 1964, pelos professores da Universidade de Michigan, Dr. Guenter Corssen, de anestesiologia, e Dr. Edward Domino, de farmacologia. Domino e Corssen descobriram evidências da segurança e efetividade da cetamina para utilização clínica como anestésico.
Nesse período, houve a preparação do Ketalar, que, em 1970, tornou-se a primeira preparação de cetamina a ser aprovada para uso humano pelo Food and Drug Association (FDA) dos Estados Unidos, a tempo de ser utilizado por soldados norte-americanos que estavam atuando como combatentes na Guerra do Vietnã. A rápida recuperação, a habilidade de manter ou elevar a pressão arterial em situações traumáticas e seus mínimos efeitos sobre o trato respiratório foram os principais motivos para ela ser usada no conflito.
Crédito de imagem
[1] Mark McCandless / Shutterstock
Fontes
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