O xadrez e o mundo medieval

O xadrez pode ser visto como um documento que expôs os valores da sociedade medieval

Ao longo da história, a invenção e a prática dos jogos marcaram diferentes sociedades espalhadas pelo mundo. Em diversas situações, esses jogos proporcionavam bastante diversão e conseguiam estabelecer uma experiência de distração que afastava os indivíduos do mundo do trabalho e das obrigações formais. Contudo, não podemos acreditar que esses jogos são uma invenção descolada do contexto e dos valores históricos em que essas atividades foram concebidas.

Em um dos mais consagrados relatos sobre os jogos, Santo Agostinho descreveu as sensações que tinha ao praticar o “desafio da bola”. Na condição de cristão, o famoso religioso medieval alertava como a disputa era capaz de aguçar seus sentimentos de ira, inveja, preguiça e vaidade. Ao expor tais reações, ele afirmava que o jogo era um risco na formação ideal do cristão. De tal modo, esta e outras autoridades religiosas não aconselhavam a prática de um tipo de atividade ligada a tais graves pecados.

Contudo, não eram todos os clérigos e demais grupos sociais que condenavam a prática dos jogos ao longo da Idade Média. Entre um dos jogos de maior popularidade, o xadrez foi incorporado ao mundo europeu através dos contatos existentes com os povos asiáticos. Com a sua ascendente popularização, acabou ganhando a famosa frase que o definia como “o jogo dos reis” e, ao mesmo tempo, como “o rei dos jogos”.

Fazendo uma breve observação sobre o jogo, podemos ver algo bem mais instigante do que as estratégias e projeções que o uso das peças do tabuleiro exige. No xadrez, temos a reprodução de uma hierarquia que é ao mesmo tempo política, militar e social. As peças ligadas ao topo da sociedade medieval são as que possuem maior mobilidade e valor no interior do jogo. Em contrapartida, as peças mais comuns, como os peões, têm movimentos limitados e são as primeiras a serem descartadas ao longo da partida.

Nessa distinção, podemos notar a reafirmação dos laços de fidelidade que ligavam o rei aos outros senhores feudais. Da mesma forma, a redução dessa mesma movimentação do jogo nos remete às obrigações que impunham aos servos a cumprirem as leis dos donos de terra e a própria impossibilidade do servo em procurar outro lugar para viver.  Temos assim as convenções desta sociedade sendo postas nas formas simbólicas que dão funcionalidade ao jogo.

Ao levantar tais aspectos da dinâmica do jogo, percebemos a forma lúdica pela qual o xadrez era capaz de reproduzir a sociedade rígida e estratificada que marcou um bom tempo do mundo medieval. Na medida em que diferentes pessoas aprendiam e reproduziam o jogo e suas regras, internalizavam a “naturalidade” da própria sociedade medieval. Isso poderia ser visto até quando o rei era encurralado no tabuleiro. Afinal, o objetivo maior do jogo só se realizava com a destruição da figura de poder absoluto.

Realizando essa breve análise, podemos ver que os valores da sociedade medieval estavam fortemente operantes em um jogo que poderia ser visto como uma distração sem maior importância. Paralelamente, cai mais uma vez por terra aquela antiquada visão que enxergava o medievo como um período de trevas e sem outras manifestações de inventividade e alegria. E isso se prova por uma simples evidência: nenhuma mente obscurecida é capaz de se divertir jogando xadrez.


Por Rainer Gonçalves Sousa
Colaborador Mundo Educação
Graduado em História pela Universidade Federal de Goiás - UFG
Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás - UFG

Publicado por Rainer Gonçalves Sousa
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