Revolta de Nika
O chamado Império Romano do Oriente foi fundado, como sabemos, no século IV d.C. pelo imperador Constantino. A transferência do centro do poder romano para Bizâncio (que passou a ser conhecido como Constantinopla) objetivava afastar o império da pressão exercida pelas invasões bárbaras, que assolavam, à época, o lado ocidental da Europa. Com o estabelecimento em Constantinopla, o império romano absorveu muitos elementos do cristianismo ortodoxo e também muitas características tradicionais do Império Romano. Entre essas últimas, estava a forma de lidar com as massas que habitavam a cidade.
Se, em Roma, os espetáculos realizados no Coliseu entretinham as camadas populares da cidade, em Constantinopla, a população concentrava-se nas corridas de cavalos realizadas no Hipódromo da cidade. Assim como no Coliseu, a violência e a brutalidade extremas também se alastravam no Hipódromo, mas com repercussões sociais mais complicadas de se lidar do que em Roma. Na época do imperador Justiniano, houve, em decorrência das rivalidades existentes em torno das corridas de cavalos, um surto de violência que culminou em uma revolta política, conhecida como Revolta de Nika.
A Revolta de Nika aconteceu no ano de 532 d.C. Apesar de Justiniano ter sido um dos imperadores que mais conseguiram tornar o Império Bizantino poderoso e sofisticado, com conquistas de território e embelezamento de Constantinopla, sua forma de administração austera não lhe garantiu popularidade. As insatisfações sociais das camadas populares do império refletiam-se nas corridas de cavalos do Hipódromo. Duas facções principais disputavam a atenção do imperador: a verde e a azul. Essas disputas chegavam ao ponto de seus membros assassinarem uns aos outros.
Justiniano, para barrar o excesso de violências entre as facções, decidiu punir os líderes de ambas, condenando-os à morte. Esse gesto gerou a revolta geral. Em certa ocasião em que o imperador estava no hipódromo e preparava-se para assistir a mais uma disputa, os membros das duas facções uniram-se e realizaram um motim que se transformou em um levante social e político. Diz-se que, enquanto conseguiam bloquear as atividades do imperador, a massa gritava “Nika! Nika!”, que significa, em grego, “Vitória”.
Esse levante culminou em uma onda de depredação e atos violentos que demorou três dias. Uma das vandalizações foi perpetrada contra a Igreja de Santa Sofia, como relata o historiador Procópio de Cesarea:
“Alguns homens da ralé, toda a escória da cidade, ergueram-se numa dada altura contra o imperador Justiniano em Bizâncio, quando provocaram o levantamento conhecido por Insurreição de Nika. […] E a fim de mostrarem que não era só contra o imperador que tinham pegado em armas, mas também contra o próprio Deus, miseráveis e ímpios com eram, tiveram a ousadia de incendiar a igreja dos cristãos, a que o povo de Bizâncio chama Sofia, epíteto que muito apropriadamente inventaram para Deus e pelo qual nomeiam o Seu templo; e Deus permitiu-lhes a realização desta impiedade, sabendo em que objeto de beleza esta relíquia estava destinada a transformar-se. Assim, toda a Igreja por essa altura era um monte de ruínas calcinadas.” [1]
Os revoltosos tentaram empossar o senador Hipácio, um dos inimigos políticos de Justiniano, como imperador. Enquanto isso, Justiniano, orientado por sua esposa, Thedora, procurou um meio de, a um só tempo, ganhar tempo com as hordas violentas e preparar um contragolpe para o motim. O imperador procurou incitar nas facções o ódio recíproco que lhes era característico. Ao mesmo tempo, seus principais generais, Belisário e Mundus, organizaram as tropas imperiais para invadir o Hipódromo e sufocar a revolta. Especula-se que mais de 30 mil pessoas foram assassinadas pelas tropas do imperador. Entre os mortos, estavam políticos, comerciantes e outras pessoas de destaque na cidade. Hipácio, que tentara usurpar o trono, foi um dos assassinados.
NOTAS:
[1] PROCÓPIO DE CESAREA. De aedificiis. In: ESPINOSA, Fernanda (Org.) Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Sá de Costa, 1981. p. 76-7.