Poemas de João Cabral de Melo Neto

Três poemas de João Cabral de Melo Neto para você experimentar os versos de um dos maiores escritores da literatura brasileira.
João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, no dia 06 de janeiro de 1920. Faleceu no Rio de Janeiro, aos 79 anos, no dia 09 de outubro de 1999 *

Impossível não se impressionar quando no primeiro contato com a poesia de João Cabral de Melo Neto. Perceber o lirismo transitar por todo o seu rigor formal, por todo o seu apreço pela estruturação fixa é tarefa para olhos atentos, e apenas estes percebem que a poesia pode e deve fugir do óbvio e alcançar um quase nível de solidez.

João divide com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira o título de maior poeta brasileiro pós-geração de 1940. Seu estilo único, marcado pelo racionalismo e pela objetividade, subverte uma ideia recorrente que muitos de nós temos sobre a poesia: ela não precisa ser sempre sentimental, metafórica, embora a subjetividade quase sempre seja hipervalorizada, como se fosse uma premissa para quem quer escrever versos. João provou o contrário ao demonstrar que o lirismo pode estar presente nas formas prosaicas, na realidade, explorando as sensações de maneira concreta. Não por acaso recebeu o epíteto de “arquiteto das palavras”, pois soube valorizar a simetria e o rigor linguístico para construir uma poesia que soube livrar-se do “lirismo bobo”, aproximando-se da tradição popular e buscando novas formas de comunicação.

Para você entender melhor o universo desse grande poeta, o Mundo Educação selecionou três poemas de João Cabral de Melo Neto que certamente serão um convite para que você conheça a obra do escritor que presenteou nossas letras com títulos memoráveis, daqueles que são imprescindíveis para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira. Boa leitura!

Dentro da perda da memória

Dentro da perda da memória

uma mulher azul estava deitada

que escondia entre os braços

desses pássaros friíssimos

que a lua sopra alta noite

nos ombros nus do retrato.

E do retrato nasciam duas flores

(dois olhos dois seios dois clarinetes)

que em certas horas do dia

cresciam prodigiosamente

para que as bicicletas de meu desespero

corressem sobre seus cabelos.

E nas bicicletas que eram poemas

chegavam meus amigos alucinados.

Sentados em desordem aparente,

ai-los a engolir regularmente seus relógios

enquanto o hierofante armado cavaleiro

movia inutilmente seu único braço.

(no livro “Pedra do Sono”)

Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(no livro “A Educação pela Pedra”)

Num Monumento à Aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

(no livro “A Educação pela Pedra”)

*A imagem que ilustra o artigo é capa do livro “João Cabral de Melo Neto”, do professor de Teoria literária e Literatura comparada da USP, João Alexandre Barbosa. Editora Publifolha.

Publicado por Luana Castro Alves Perez
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