Imperador Teodósio e a Igreja
Um dos momentos mais importantes da história do Cristianismo e, por consequência, da formação da civilização europeia foi a oficialização dessa religião pelo imperador Teodósio, o Grande, (imperador do Ocidente) em 380 d.C. Foi esse processo de oficialização que permitiu a institucionalização do que hoje conhecemos como catolicismo. Entretanto, apesar de ter promovido essa oficialização, a relação de Teodósio com os então bispos da Igreja foi tumultuada e cheia de embates. O motivo principal era o fato de os bispos não aceitarem a sobreposição de poder que o imperador queria impor sobre a Igreja. Para compreender essa relação complexa entre poder temporal (império) e poder espiritual (igreja), é necessário que nos situemos em seu contexto.
É sabido que, no mundo antigo, sobretudo nos séculos II e III d.C., o número de pessoas convertidas à religião cristã era bastante alto nos domínios do Império Romano. Em razão de uma gama de fatores, entre eles a não prestação de culto ao imperador (considerado deus pelos romanos), os cristãos passaram a ser brutalmente perseguidos e assassinados pelas autoridades de Roma. A situação dos cristãos no mundo antigo só passou a mudar efetivamente no século IV, quando o Império Romano já se encontrava dividido entre a porção ocidental e a oriental. Em 312 d.C., Constantino, imperador do Oriente, converteu-se ao cristianismo e instituiu a tolerância a essa crença dentro do Império Romano Oriental. Constantino também convocou o Concílio Ecumênico, realizado em Niceia, que foi de fundamental importância para a definição dos dogmas. Mas a oficialização do cristianismo como religião do Império Romano só ocorreu mesmo com Teodósio.
Teodósio, por meio do Édito da Tessalônia, não apenas tornou o cristianismo oficial, mas proibiu os cultos pagãos greco-romanos, de modo que, pouco a pouco, todo o simbolismo pagão passou a ser assimilado pelo cristianismo, como a data do Natal. Entretanto, Teodósio pensava e agia como herdeiro das estirpes de imperadores e, em um caso especial, a insensatez e a fúria dominaram-lhe a razão: uma pessoa foi presa na Tessalônia, em 388 d.C., acusada de pederastia (relação homossexual entre pessoas do sexo masculino – prática condenada moralmente pelo cristianismo e legalmente pelo Império). A população (de maioria pagã) exigiu que o sujeito fosse libertado. Não ocorrendo isso, entraram na prisão, liberam-no e acabaram por linchar o general que o havia encarcerado. Em represália, Teodósio ordenou que o exército massacrasse a população de Tessalônia. Milhares de pessoas foram mortas quando assistiam às corridas de bigas no circo da cidade.
Após esse acontecimento, o imperador foi a Milão com o objetivo de ir à missa, celebrada pelo então bispo Ambrósio (que depois seria canonizado como santo). Ambrósio, entretanto, em um ato de coragem em defesa dos princípios de sua religião, impediu que o imperador adentrasse a igreja de Milão e disse que não admitiria a presença do imperador na missa enquanto este não se arrependesse publicamente do massacre de Tessalônia. Depois de alguns meses, o imperador, ameaçado de excomunhão por Santo Ambrósio, colocou uma veste de penitência e humilhou-se pedindo perdão pelo massacre e outros pecados cometidos. Ambrósio, com sua autoridade de bispo, absolveu Teodósio.
Santo Ambrósio impedindo Teodósio de assistir à missa. Tela de Antoon Van Dyck
Em uma de suas epístolas, é possível ler uma reflexão de Santo Ambrósio a respeito do caso:
O que poderia eu fazer? Não escutar? Mas não poderia fechar os ouvidos com cera, como contam as antigas fábulas. Devo dizer o que ouvi? Mas fui obrigado a evitar justamente o que temia pudesse ser provocado por suas ordens, ou seja, um massacre. Devo silenciar? Mas a pior coisa que poderia acontecer seria confinar minha consciência e minhas palavras. Onde estaria? Quando um sacerdote não admoesta um pecador, este morrerá com seu pecado, e o sacerdote será culpado de falhar em corrigi-lo (Epístola 51, 3)
Esse acontecimento é importante porque acentua algo característico do catolicismo: a primazia do poder espiritual sobre o poder temporal, ao contrário do que ocorreu no cristianismo ortodoxo do Oriente com o fenômeno do Cesaropapismo.