Poemas de João Cabral de Melo Neto
Impossível não se impressionar quando no primeiro contato com a poesia de João Cabral de Melo Neto. Perceber o lirismo transitar por todo o seu rigor formal, por todo o seu apreço pela estruturação fixa é tarefa para olhos atentos, e apenas estes percebem que a poesia pode e deve fugir do óbvio e alcançar um quase nível de solidez.
João divide com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira o título de maior poeta brasileiro pós-geração de 1940. Seu estilo único, marcado pelo racionalismo e pela objetividade, subverte uma ideia recorrente que muitos de nós temos sobre a poesia: ela não precisa ser sempre sentimental, metafórica, embora a subjetividade quase sempre seja hipervalorizada, como se fosse uma premissa para quem quer escrever versos. João provou o contrário ao demonstrar que o lirismo pode estar presente nas formas prosaicas, na realidade, explorando as sensações de maneira concreta. Não por acaso recebeu o epíteto de “arquiteto das palavras”, pois soube valorizar a simetria e o rigor linguístico para construir uma poesia que soube livrar-se do “lirismo bobo”, aproximando-se da tradição popular e buscando novas formas de comunicação.
Para você entender melhor o universo desse grande poeta, o Mundo Educação selecionou três poemas de João Cabral de Melo Neto que certamente serão um convite para que você conheça a obra do escritor que presenteou nossas letras com títulos memoráveis, daqueles que são imprescindíveis para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira. Boa leitura!
Dentro da perda da memória
Dentro da perda da memória
uma mulher azul estava deitada
que escondia entre os braços
desses pássaros friíssimos
que a lua sopra alta noite
nos ombros nus do retrato.
E do retrato nasciam duas flores
(dois olhos dois seios dois clarinetes)
que em certas horas do dia
cresciam prodigiosamente
para que as bicicletas de meu desespero
corressem sobre seus cabelos.
E nas bicicletas que eram poemas
chegavam meus amigos alucinados.
Sentados em desordem aparente,
ai-los a engolir regularmente seus relógios
enquanto o hierofante armado cavaleiro
movia inutilmente seu único braço.
(no livro “Pedra do Sono”)
Tecendo a Manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(no livro “A Educação pela Pedra”)
Num Monumento à Aspirina
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
(no livro “A Educação pela Pedra”)
*A imagem que ilustra o artigo é capa do livro “João Cabral de Melo Neto”, do professor de Teoria literária e Literatura comparada da USP, João Alexandre Barbosa. Editora Publifolha.