A linguagem do Terceiro Reich
Várias são as análises e narrativas de judeus que estiveram nos campos de concentração nazistas e conseguiram sobreviver. O holocausto provocado pelo Nazismo suscitou a sobreviventes como o italiano Primo Levi e o austríaco Viktor Frankl densas reflexões sobre até que ponto uma obsessão política pode conduzir a humanidade. O alemão Victor Klemperer (1881- 1960), que tinha fé protestante, porém era filho de judeus, apesar de não ter sido enviado a campos de concentração, viveu sob intenso terror na cidade de Desdren (Alemanha) até o ano de 1945. Em seus diários e obras que seriam publicadas, Klemperer conseguiu elaborar um conjunto de análises sobre a linguagem do Terceiro Reich ou, como ele próprio abreviava em latim: LTI (Lingua Tertii Imperii).
Para Klemperer, a decadência moral e espiritual em que a Alemanha mergulhou sob o domínio do nazismo poderia ser mais bem analisada a partir da linguagem, isto é, das expressões e das maneiras como a população alemã passou a referir-se a Hitler (füher) e ao seu poder (Reich), o “Líder” e o “Império”, respectivamente. A linguagem do Terceiro Império (o segundo foi o de Guilherme II), para Klemperer, havia se transformado em uma linguagem vazia e sem concretude com os valores mais nobres de um povo.
Havia, segundo o que se podia observar, uma perversão de referências religiosas, que, na atmosfera do nazismo, era endereçada à figura de Hitler e ao seu “Império”. Hitler era reverenciado como o “salvador”, o “messias” da raça ariana, aquele que restauraria o Reich, inaugurando a “Terceira Era”. O controle da política e da população alemã pelo füher estava associado ao poder da Divina Providência, em termos cristãos. A LTI constituía-se como uma paródia terrível do linguajar religioso.
Klemperer evidenciou que todas as referências ao Terceiro Reich traziam o objetivo de “santificar” as ações salvíficas do nazismo. O plano de um império mundial assumia, assim, feições messiânicas e místicas: “A troca do termo Reich para Terceiro Reich eleva essa santidade ao terreno místico, em uma monstruosa simplicidade que se insinua no inconsciente de todos. Também aqui, a LTI endeusa Hitler apropriando-se de algo que já encontra pronta, que é a primeira edição de Das Dritte Reich [O Segundo Reich], de Moeller Von Den Brucks, de dezembro de 1922.” [1]
A obra de Von Den Brucks, citada por Klemperer e escrita após a Primeira Guerra Mundial, foi utilizada como ponto de apoio para a construção da ideia do Terceiro Reich, assim como a cultura germânica como um todo era reivindicada pela máquina de propaganda nazista como algo qualitativamente superior a quaisquer outras, tornando explícito, para os nazistas, a excelência da raça ariana. Essa autodeificação, para Klemperer, era o sintoma mais sinistro da LTI e de sua perversão.
[1] KLEMPERER, Victor. LTI: a linguagem no Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p.195
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