Helenização do Cristianismo em Clemente de Alexandria
A expansão do cristianismo, nos três primeiros séculos de nossa era, abarcou regiões como o Oriente Médio, a Ásia Menor, o Norte da África e a Europa. Todas essas regiões estiveram, outrora, sob os domínios do Império Helenístico (construído por Alexandre Magno, da Macedônia) e do Império Romano. Assim sendo, houve o encontro entre a cultura greco-romana e a cultura judaico-cristã nessas regiões. Esse encontro foi fundamental para a universalização da religião cristã, bem como para estabelecer as bases da civilização ocidental. Entre os atores históricos responsáveis pela integração entre os elementos intelectuais e espirituais das duas tradições, estão os “Pais da Igreja” e, entre eles, Clemente de Alexandria.
Clemente de Alexandria (ou Tito Flávio Clemente), ateniense, nascido em 150 d.C. e morto na Palestina, em 215 d.C., é tido por muito historiadores e filósofos como o mais erudito dos primeiros “Pais da Igreja” atuantes no século III. Por “Pais da Igreja” entende-se os primeiros bispos que seguiram evangelizando os antigos povos pagãos, seguindo o exemplo dos doze apóstolos e o de Paulo de Tarso. Clemente era grande conhecedor do grego clássico (estilo em que foram escritas as obras de filosofia, de teatro e de história da Grécia Antiga), bem como do grego comum (ou koiné, no qual foram escritos os quatro evangelhos e os outros livros que compõem o Novo Testamento). Além disso, Clemente também conhecia a vasta literatura judaica lida à época, a exemplo da obra de Fílon de Alexandria, que articulava o pensamento de Platão com a mística judaica.
Todo esse conhecimento lhe deu a vantagem de saber escolher bem as ferramentas para a sua pregação e defesa do cristianismo. Pode-se dizer que Clemente operou uma helenização do cristianismo, isto é, assentou a mensagem cristã sobre as bases do pensamento grego, sobre o processo de compreensão lógica e argumentativa. Isso seria fundamental para o pensamento dos dois maiores doutores da história da Igreja, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
A principal obra de Clemente intitula-se Exortação aos Gregos, na qual ele procura destacar os elementos do pensamento helenístico que se aproximavam da verdade cristã, isto é, a realidade de Cristo como o Logos divino, a inteligência criadora de Deus. A busca filosófica pela verdade e a fuga do discurso mitológico era, para Clemente, um prenúncio necessário para a recepção da mensagem cristã no mundo. O mistério da encarnação do “Logos” e da revelação da “Verdade” aos homens teria, no discurso filosófico, um momento de ordem, de construção argumentativa.
A exortação de Clemente aos gregos, cujo objetivo final também era a conversão destes, era munida de uma retórica eloquente, que visava deixar o caminho aberto para quem quisesse seguir a “vontade do Pai”, tal como se percebe no seguinte trecho:
[...] se tu queres, recebe, tu também, a iniciação e tomarás parte no coro dos anjos em torno de Deus, enquanto o Logos de Deus se unirá a nossos hinos. Este é o eterno Jesus, o único grande sacerdote do Deus único que também é seu pai; ele ora pelos homens e os exorta: 'Escutai, tribos inumeráveis', mais ainda aqueles dentre os homens racionais, bárbaros e gregos; eu chamo toda a raça humana, eu, que sou o criador pela vontade do Pai.(Exortação aos Gregos, XII 120, 02) [1]
NOTAS
[1] Tradução de Rita de Cássia Codá dos Santos. In: Exortação aos gregos – A helenização do Cristianismo em Clemente de Alexandria. Tese de doutorado em Literatura Comparada, UFMG, 2006. p. 51.