Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro é considerado um dos maiores escritores da literatura portuguesa. Em sua obra, temas como a melancolia e o descontentamento são recorrentes.
Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa, no dia 19 de maio de 1890. Cometeu suicídio em um hotel em Nice, na França, no dia 26 de abril de 1926

Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 

Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 

Para mim é sempre ontem, 
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem (…)”.

O fragmento que você leu acima é parte do poema Dispersão, um dos mais famosos da obra de Mário de Sá-Carneiro, importante poeta da literatura portuguesa. Ao lado de Fernando Pessoa, Mário ocupou posição de destaque entre os modernistas portugueses, tendo sido um dos fundadores da principal revista de divulgação dos ideais do movimento, a revista Orpheu. A melancolia e o descontentamento são temas recorrentes em sua obra, e a inadaptação à vida, perceptível em seus poemas, levou o poeta ao suicídio no ano de 1916.

Mário de Sá-Carneiro nasceu na cidade de Lisboa, Portugal, no dia 19 de maio de 1890. A morte da mãe quando o poeta tinha apenas dois anos marcou profundamente sua infância, tendo passado, pois, os primeiros anos de sua vida sob os cuidados dos avós, já que após a morte da esposa seu pai iniciara uma vida de viagens. De família abastada, aos vinte e um anos seguiu para a cidade de Coimbra, onde ingressou na Faculdade de Direito, não tendo concluído o primeiro ano do curso. Em 1912, conheceu Fernando Pessoa, que se tornou seu melhor amigo. Nem mesmo o afastamento – Mário seguiu para Paris a fim de prosseguir com os estudos superiores – dissolveu os laços de amizade, e as correspondências trocadas entre os amigos tornaram-se objeto de análise para os estudiosos e amantes da literatura.

Em Paris, iniciou os estudos na aclamada Universidade de Sorbonne, contudo, logo deixou de frequentar as aulas, entregando-se a uma vida boêmia, o que agravou sobremaneira sua já frágil saúde emocional. Foi nessa época que intensificou o contato com Fernando Pessoa, deixando claro nas cartas que escreveu suas angústias e desespero diante da dificuldade em adaptar-se à vida:

Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os “isolados” que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.”

Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa' 

Entre os anos de 1912 e 1916, Mário de Sá Carneiro compôs a maior parte de sua obra literária. Embora tenha vivido pouco (o poeta deu fim à própria vida aos 26 anos), deixou uma inestimável contribuição para a literatura portuguesa por meio dos livros Princípio (novelas - 1912), Memórias de Paris (coletânea de memórias - 1913), A Confissão de Lúcio (romance - 1914), Dispersão (poesia – 1914) e o último publicado em vida, Céu em Fogo (novelas – 1915), além das correspondências trocadas com Fernando Pessoa, postumamente organizadas e publicadas em dois volumes em 1958 e 1959. A personalidade sensível, o humor instável, o narcisismo e o sentimento de abandono culminaram em uma linguagem irônica e autossarcástica, principais características de sua poética.


Loucura...
é uma das novelas publicadas no livro Princípio. A Confissão de Lúcio é um conto que integra o livro homônimo de Mário de Sá-Carneiro

Nas correspondências trocadas com o amigo Fernando Pessoa, por várias vezes ameaçou cometer suicídio e, no dia 26 de abril de 1916, Mário de Sá-Carneiro, hospedado em um hotel na cidade francesa de Nice, cumpriu a promessa ao consumir vários frascos de estricnina, sucumbindo às crises sentimentais e financeiras que marcaram os últimos anos de sua conturbada vida. Dias antes de sua morte, escreveu sua última carta para o amigo Fernando Pessoa:

Meu querido Amigo.

A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas “cartas de despedida”... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. […]

Mário de Sá-Carneiro, carta para Fernando Pessoa, 31 de Março de 1916.

Para você conhecer mais sobre a poesia de Mário de Sá-Carneiro, o Mundo Educação escolheu um de seus mais belos poemas para você apreciar toda a inquietação e genialidade desse inigualável escritor da literatura portuguesa. Boa leitura!

Quase

                                       Um pouco mais de sol   - eu era brasa,

                                        Um pouco mais de azul - eu era além.

                                        Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

                                        Se ao menos eu permanecesse aquém...

                                        Assombro ou paz?  Em vão... Tudo esvaído

                                        Num grande mar enganador de espuma;

                                        E o grande sonho despertado em bruma,

                                        O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

                                        Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

                                        Quase o princípio e o fim - quase a expansão...

                                        Mas na minh'alma tudo se derrama...

                                        Entanto nada foi só ilusão!

                                        De tudo houve um começo ... e tudo errou...

                                        — Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...

                                        Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

                                        Asa que se elançou mas não voou...

                                        Momentos de alma que,desbaratei...

                                        Templos aonde nunca pus um altar...

                                        Rios que perdi sem os levar ao mar...

                                        Ânsias que foram mas que não fixei...

                                        Se me vagueio, encontro só indícios...

                                        Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;

                                        E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

                                        Puseram grades sobre os precipícios...

                                        Num ímpeto difuso de quebranto,

                                        Tudo encetei e nada possuí...

                                        Hoje, de mim, só resta o desencanto

                                        Das coisas que beijei mas não vivi...

                                        Um pouco mais de sol — e fora brasa,

                                        Um pouco mais de azul — e fora além.

                                        Para atingir faltou-me um golpe de asa...

                                        Se ao menos eu permanecesse aquém...

Publicado por Luana Castro Alves Perez
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