Por que Tiradentes se tornou mártir?
Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, é um dos grandes nomes da história brasileira e, durante décadas, sua imagem esteve associada com o heroísmo de alguém que lutou contra o domínio colonial português. Essa imagem mitificada de Tiradentes foi criada logo após a Proclamação da República e popularizou-se no Brasil.
Contexto
Joaquim José da Silva Xavier nasceu em 12 de novembro de 1746, na Capitania de Minas Gerais. Seus pais faleceram quando Joaquim José era ainda uma criança e, por causa das dívidas, ele e seus irmãos perderam todas as suas propriedades. Na vida adulta, inicialmente, ele dedicou-se ao comércio, no entanto, não teve sucesso nesse ofício.
Joaquim José também trabalhou como cirurgião dentista – ofício que havia aprendido com seu tio Sebastião Ferreira Leitão – o que lhe rendeu o apelido de Tiradentes. A partir de 1780, Tiradentes alistou-se na Cavalaria da Capitania de Minas Gerais no posto inicial de alferes. Nessa função, Tiradentes foi designado para realizar a patrulha do “Caminho Novo”, uma importante estrada que ligava as zonas mineradoras da capitania à capital, Rio de Janeiro.
Tiradentes permaneceu na cavalaria até 1787, quando pediu licença da corporação, pois estava insatisfeito com o fato de não conseguir uma promoção de posto e por ter perdido o comando da patrulha do Caminho Novo. É nesse contexto que Tiradentes, descontente com o domínio colonial, teve acesso aos ideais revolucionários que circulavam em Minas Gerais.
A difusão desses ideais revolucionários inspirava-se nos ideais iluministas e liberais que estavam em evidência naquele momento. Os membros da elite mineradora de Minas Gerais estavam extremamente insatisfeitos com o domínio colonial em razão dos altos impostos que eram cobrados, sobretudo, pela divulgação de uma derrama para breve (derrama era uma cobrança obrigatória que Portugal realizava para alcançar a meta de imposto estipulada).
As ideias de conspiração contra Portugal entre a elite mineradora começaram a ser alimentadas no começo da década de 1780 e ganharam força até o final dessa década, à medida que a insatisfação local crescia. A partir de 1788, o movimento iniciou-se de fato com a ocorrência de reuniões secretas e com a definição do início do motim para fevereiro de 1789 – data em que ocorreria a derrama.
A conspiração, no entanto, nunca se concretizou, pois, no começo de 1789, os inconfidentes foram denunciados por Joaquim Silvério dos Reis, um dos envolvidos na conspiração. Silvério dos Reis possuía dívidas enormes com Portugal e encontrou na denúncia da conspiração a forma de livrar-se de seus débitos com a Coroa.
A respeito da denúncia de Joaquim Silvério dos Reis, as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling afirmam: “[Joaquim Silvério] Contou tudo minuciosamente, várias vezes e por escrito: os detalhes da conspiração, a senha, o nome dos principais conjurados, o projeto político, a estratégia militar”|1|.
Com a denúncia de Silvério dos Reis, a Coroa portuguesa agiu e prendeu todos os envolvidos, inclusive o próprio Tiradentes, que foi localizado no Rio de Janeiro. A partir disso, iniciou-se um longo processo de julgamento no qual os acusados foram interrogados por diversas vezes ao longo de um período de três anos.
Envolvimento e julgamento de Tiradentes
Diferentemente do que muitos acreditam, Tiradentes não era o líder da Inconfidência Mineira, o que, no entanto, não apaga o fato de que ele teria sido um dos que mais se envolveram com a conspiração. Os historiadores afirmam que Tiradentes cumpria a importante tarefa de ser a conexão dos conspiradores com as pessoas das camadas mais pobres da sociedade.
Assim, com a interlocução de Tiradentes, a conspiração foi propagandeada por diversos grupos sociais distintos. Sobre seu papel na Inconfidência Mineira, Schwarcz e Starling afirmam que “Tiradentes foi o mais ativo propagandista das ideias que sustentaram o projeto político da Conjuração Mineira e o grande responsável por colocá-las em circulação no interior de uma rede formada pelo entrecruzamento de diferentes grupos sociais”|2|.
Quando o movimento foi denunciado, Tiradentes estava em viagem na cidade do Rio de Janeiro, local onde foi preso pelo seu envolvimento com a conspiração. O longo processo de julgamento dos inconfidentes estendeu-se por três anos, e a sentença saiu no dia 18 de abril de 1792. Entre os julgados, alguns foram condenados ao degredo e outros, à morte, no entanto, somente Tiradentes teve sua pena mantida.
Os outros envolvidos que foram condenados à morte receberam o perdão de D. Maria, rainha de Portugal, e suas penas foram reduzidas para degredo. Os fatos que explicam a execução da pena de morte somente para Tiradentes são múltiplas. Os historiadores levantam diversas razões: o fato mais mencionado é o não pertencimento desse inconfidente à elite da sociedade e, por isso, não possuía influência dentro da Coroa portuguesa para reverter sua pena.
Outros fatores também são levantados, como Tiradentes ter sido o único que, de fato, assumiu abertamente seu envolvimento com a conspiração e com os ideais republicanos. Alguns historiadores afirmam ainda que ele, na verdade, optou por carregar a culpa para livrar seus colegas da pena.
Mitificação de Tiradentes
A imagem de Tiradentes permaneceu esquecida durante anos, já que esse conjurado foi utilizado pela Coroa portuguesa para passar uma mensagem à população de que conspirações contra o domínio colonial não seriam aceitas.
Tiradentes foi enforcado no dia 21 de abril de 1792 e, em seguida, foi decapitado – sua cabeça foi colocada em um poste em um local público da cidade de Ouro Preto. Seu corpo foi esquartejado em quatro partes e cada uma delas foi colocada em postes, em diferentes trechos do Caminho Novo. Por fim, a casa de Tiradentes foi destruída e o solo foi salgado. Tamanha crueldade e rigidez na execução da pena tinha o objetivo claro de amedrontar a população e evitar que novas conspirações surgissem.
Nesse momento, é importante esclarecer que a imagem de Tiradentes não havia assumido ainda a condição de herói e mártir do povo brasileiro. Esse inconfidente foi preso, julgado e executado como traidor e, conforme mencionado, sua imagem esteve esquecida durante muitos anos. Mesmo depois da independência brasileira, a imagem de Tiradentes permaneceu no esquecimento.
Isso se explica pelo fato de que, no período da monarquia, Tiradentes e os inconfidentes eram republicanos convictos, portanto, não seria interessante para a monarquia estabelecida em 1822 resgatar a imagem de um republicano como herói. Além disso, segundo Boris Fausto, Dom Pedro era descendente direto de Dona Maria, rainha responsável pela condenação dos inconfidentes e pela execução de Tiradentes|3|.
O resgaste da imagem de Tiradentes como herói e mártir do Brasil surgiu somente após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Após se estabelecer, o novo regime via a necessidade de haver figuras como heróis para fazer a aproximação do movimento com o povo brasileiro.
No caso da escolha de Tiradentes, as seguintes considerações podem ser feitas. Primeiramente, existe o fato de que, durante alguns anos de sua vida, ele foi um militar, e isso foi levado em consideração por aqueles que haviam proclamado a República – em maioria, militares. Segundo os historiadores, isso fazia parte de uma relação feita pelos republicanos com a intenção de passar a mensagem da preocupação histórica dos militares com o republicanismo no Brasil.
Além disso, existe o fato de Tiradentes ser oriundo das classes mais baixas de Minas Gerais, o que criava um paralelo de sua figura como herói republicano e das massas, ou seja, criava-se a ideia de que havia uma demanda pela República no Brasil entre as camadas populares a longo prazo.
Tiradentes e a figura de Jesus Cristo
Por fim, há a questão do uso da imagem de Tiradentes. Durante o processo de sua transformação em herói e mártir, um elemento essencial foi a aproximação dessa imagem com a figura de Jesus Cristo. Essa era uma estratégia que visava se aproveitar da religiosidade popular para promover a aceitação de Tiradentes.
Assim, Tiradentes passou a ser registrado com cabelos e barbas longas, de maneira bem parecida com a que Jesus era retratado. Nesses retratos, passaram a apresentá-lo sempre olhando para cima, assim como Cristo em seu martírio. Essa representação surgiu mesmo não existindo nenhum paralelo que a confirmasse.
A respeito disso, os historiadores levantam a questão de que, muito provavelmente, Tiradentes, no momento de sua execução, estava com os cabelos raspados. Isso porque era uma prática comum das prisões portuguesas da época raspar os cabelos e barbas de seus presos como forma de evitar a infestação de piolhos. Esse argumento ganha força quando nos lembramos que Tiradentes havia passado três anos preso.
Por fim, outro elemento mencionado pelos historiadores que questionam essa representação de Tiradentes é o fato de que ele era um militar e que, portanto, era obrigado a seguir as normas da corporação que permitiam os militares terem, no máximo, um bigode. De toda forma, o resgate de Tiradentes como herói e mártir, feito pelos republicanos no fim do XIX, popularizou-se, e a imagem construída em cima desse discurso, que se estabeleceu e foi transmitida década após década, fez com esse personagem assumisse um lugar destacado na memória histórica brasileira.
|1| SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 145.
|2| Idem, p. 143.
|3| FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 103.
*Créditos da imagem: Lefteris Papaulakis e Shutterstock