Conceição Evaristo
Conceição Evaristo é uma escritora mineira, de Belo Horizonte, nascida em 29 de novembro de 1946, e doutora em Literatura Comparada. Escritora de origem pobre e de etnia negra, seus textos trazem a experiência de opressão e marginalidade, com forte valorização da memória ancestral. A autora publicou seus primeiros textos literários na série Cadernos negros, e seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, foi publicado, pela primeira vez, em 2003.
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Biografia de Conceição Evaristo
Conceição Evaristo nasceu em 29 de novembro de 1946, em uma favela na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Em 1973, mudou-se para o Rio de Janeiro. Fez graduação em Letras, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestrado em Literatura Brasileira, na PUC Rio, e doutorado em Literatura Comparada, na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em 1958, ao terminar o primário, segundo Conceição Evaristo, ela ganhou seu primeiro prêmio de literatura, pois venceu o concurso de redação da escola. O título de seu texto premiado: Por que me orgulho de ser brasileira. Aos 17 anos, aderiu ao movimento da Juventude Operária Católica (JOC), que promovia reflexões sobre a realidade brasileira. Após terminar o Curso Normal no Instituto de Educação de Minas Gerais, em 1971, ela decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro. A partir daí, as reflexões sobre questões étnicas passaram a ser mais constantes na vida da escritora.
Seus primeiros contos e poemas foram publicados na série Cadernos negros|1|, e seu primeiro e mais famoso romance, Ponciá Vicêncio, foi publicado, pela primeira vez, em 2003. Em 2016, ganhou o Prêmio Faz Diferença, na categoria prosa, do jornal O Globo. Já em 2018, ganhou o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais, pelo conjunto da obra. Em 2019, ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria Personalidade Literária do Ano.
Em depoimento, no I Colóquio de Escritoras Mineiras, em 2009, na Faculdade de Letras da UFMG, Conceição Evaristo declarou:
“A ausência de um pai foi dirimida um pouco pela presença de meu padrasto, mas, sem dúvida alguma, o fato de eu ter tido duas mães suavizou muito o vazio paterno que me rondava. Aos sete anos, fui morar com a irmã mais velha de minha mãe, minha tia Maria Filomena da Silva. Ela era casada com Antônio João da Silva, o Tio Totó, viúvo de outros dois casamentos. Não tiveram filhos. Fui morar com eles, para que a minha mãe tivesse uma boca a menos para alimentar. Os dois passavam por menos necessidades, meu Tio Totó era pedreiro, e minha Tia Lia, lavadeira como minha mãe. A oportunidade que eu tive para estudar surgiu muito da condição de vida, um pouco melhor, que eu desfrutava em casa dessa tia. As minhas irmãs enfrentavam dificuldades maiores.”
Assim, nos textos da escritora, estão presentes os marginalizados, negros e/ou pobres, mulheres, que muito têm a ver com a história da sua vida. Não são textos propriamente autobiográficos, mas resultado de uma experiência de exclusão, da observação de uma realidade brasileira que a escritora transpõe para eles e suas personagens.
Em seu depoimento, a escritora acrescenta:
“Mãe lavadeira, tia lavadeira e ainda eficientes em todos os ramos dos serviços domésticos. Cozinhar, arrumar, passar, cuidar de crianças. Também eu, desde menina, aprendi a arte de cuidar do corpo do outro. Aos oito anos surgiu meu primeiro emprego doméstico, e, ao longo do tempo, outros foram acontecendo. Minha passagem pelas casas das patroas foi alternada por outras atividades, como levar crianças vizinhas para a escola, já que eu levava os meus irmãos. O mesmo acontecia com os deveres de casa. Ao assistir os meninos de minha casa, eu estendia essa assistência às crianças da favela, o que me rendia também uns trocadinhos. Além disso, participava com minha mãe e tia, da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas. Troquei também horas de tarefas domésticas nas casas de professores, por aulas particulares, por maior atenção na escola e principalmente pela possibilidade de ganhar livros, sempre didáticos, para mim, para minhas irmãs e irmãos.”
A autora fala também sobre o início de sua vida escolar:
“Foi em uma ambiência escolar marcada por práticas pedagógicas excelentes para uns, e nefastas para outros, que descobri com mais intensidade a nossa condição de negros e pobres. Geograficamente, no Curso Primário experimentei um ‘apartaid’ escolar. O prédio era uma construção de dois andares. No andar superior, ficavam as classes dos mais adiantados, dos que recebiam medalhas, dos que não repetiam a série, dos que cantavam e dançavam nas festas e das meninas que coroavam Nossa Senhora. O ensino religioso era obrigatório, e ali como na igreja os anjos eram loiros, sempre. Passei o Curso Primário, quase todo, desejando ser aluna de uma das salas do andar superior. Minhas irmãs, irmãos, todos os alunos pobres e eu sempre ficávamos alocados nas classes do porão do prédio. Porões da escola, porões dos navios. Entretanto, ao ser muito bem aprovada da terceira para a quarta série, para minha alegria fui colocada em uma sala do andar superior. Situação que desgostou alguns professores. Eu, menina questionadora, teimosa em me apresentar nos eventos escolares, nos concursos de leitura e redação, nos coros infantis, tudo sem ser convidada, incomodava vários professores, mas também conquistava a simpatia de muitos outros.”
Assim, essa menina questionadora trabalhou como empregada doméstica para concluir o Curso Normal aos 25 anos de idade, depois prestou concurso para o magistério no Rio de Janeiro, onde trabalhou como professora da rede pública de ensino, fez faculdade, mestrado, doutorado e transformou-se numa das escritoras negras mais conhecidas do Brasil.
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Principais obras de Conceição Evaristo
Até o momento, Conceição Evaristo publicou, além de inúmeros textos acadêmicos, as seguintes obras literárias:
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Ponciá Vicêncio (2003) - romance
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Becos da memória (2006) - romance
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Poemas de recordação e outros movimentos (2008) - poesia
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Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) - contos
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Olhos d’água (2014) - contos
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Histórias de leves enganos e parecenças (2016) - contos e novela
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Canção para ninar menino grande (2018) - romance
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Ponciá Vicêncio
Sua obra mais famosa é Ponciá Vicêncio. Nesse romance, a protagonista Ponciá Vicêncio vai para a cidade grande em busca de uma vida melhor, e acaba afastando-se de sua mãe e de seu irmão, de sua família, de sua origem. Nesse livro, é colocada em foco a questão da ancestralidade e da memória, impressa em Ponciá desde o nascimento:
“Surpresa maior, não foi pelo fato de a menina ter andado tão repentinamente, mas pelo modo. Andava com um dos braços escondido às costas e tinha a mãozinha fechada como se fosse cotó. Fazia quase um ano que Vô Vicêncio tinha morrido. Todos deram de perguntar por que ela andava assim. Quando o avô morreu, a menina era tão pequena! Como agora imitava o avô? Todos se assustavam.”
Essa sua semelhança com o avô é tomada como algo místico pela sua mãe. Contudo, nada mais é do que a marca de ancestralidade metaforicamente manifesta. A menina é Ponciá, mas também é ele, Vô Vicêncio, a sua história e a história dos que vieram antes dele. Herança não só genética e cultural, mas também da opressão histórica sofrida, como bem demonstra a fala do narrador sobre o pai ausente de Ponciá:
“Filho de ex-escravos, crescera na fazenda levando a mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo em que o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu.”
Ponciá possui o talento de trabalhar o barro, fazer esculturas. Ainda criança, ela fez um “homem baixinho, curvado, magrinho, graveto e com o bracinho cotoco para trás”. Essa reprodução em barro de Vô Vicêncio assustou a mãe de Ponciá: “Ela era tão pequena, tão de colo ainda quando o homem fez a passagem. Como, então, Ponciá Vicêncio havia guardado todo o jeito dele na memória?”. É a memória, fato inevitável, que parece acompanhar a protagonista desde o nascimento. Memória de opressão, impressa em seu sobrenome:
“Na assinatura dela a reminiscência do poderio do senhor, um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens. E Ponciá? De onde teria surgido Ponciá? Por quê? Em que memória do tempo estaria escrito o significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um nome que não tinha dono.”
Vô Vicêncio nasceu escravo, alguns de seus filhos tinham nascido depois da Lei do Ventre Livre, mas, ainda assim, foram vendidos. Desesperado, Vô Vicêncio então matou a esposa e tentou matar-se, decepou a própria mão com uma foice. A tentativa de suicídio de Vô Vicêncio foi mal sucedida, mas ele ficou cotó, herança mística de Ponciá, lembrança do desespero diante da falta de liberdade.
A protagonista também não demonstra um espírito passivo. Em criança, Ponciá Vicêncio começou a aprender a ler com padres missionários. Quando eles foram embora, sem terminar o serviço, ela continuou a estudar e conseguiu aprender a ler sozinha. Adulta, migra em busca de uma vida melhor:
“Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado em que nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. [...]. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer a todos os dias. Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova.”
Na cidade grande, ela encontra a solidão, não tem para onde ir, passa a noite na rua. Logo busca trabalho, consegue um emprego como empregada doméstica. Depois de muitos anos, consegue comprar um quartinho na periferia. Ainda, não sabe que seu irmão Luandi está na mesma cidade que ela, em busca de uma vida melhor e com um sonho, impedido pelo fato de não saber ler:
“O delegado, o soldado negro e o outro branco riram, gargalharam. Quando fizeram silêncio, foi o soldado negro que se aproximou, dizendo se chamar Nestor e que, se Luandi quisesse, ele estaria empregado. Era para varrer, limpar, cuidar do asseio da delegacia. E como ele não sabia ler nem assinar, não poderia ser soldado. Mas, se ele estudasse muito, poderia ser soldado um dia. Poderia ser mais, muito mais. Entretanto, Luandi só queria ser soldado.”
Na capital, longe dos seus, a mulher Ponciá passa a desenvolver certa melancolia, resultado da perda de sua identidade e da desilusão diante da dura realidade, capaz de matar até mesmo os sonhos:
“De manhã, ela parecia mais acabrunhada ainda. Pediu ao homem que não a chamasse mais de Ponciá Vicêncio. Ele espantado perguntou-lhe como a chamaria então. Olhando fundo e desesperadamente nos olhos dele, ela respondeu que lhe poderia chamar de nada.”
Assim, irmã e irmão, cada um com o seu sonho, vivem em um contexto de opressão e injustiças iniciado bem antes do nascimento de Ponciá, na época da escravidão impressa em seu sobrenome: Vicêncio.
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Poemas de Conceição Evaristo
Selecionamos três poemas de Conceição Evaristo para ler e comentar, todos do livro Poemas de recordação e outros movimentos. O primeiro deles é “Vozes-mulheres”. Nele o eu lírico resgata a sua ancestralidade, ao falar das mulheres que a precederam, todas com uma história de opressão por serem negras e pobres. Entretanto o texto traz um tom otimista em relação à nova geração de mulheres negras:
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem — o hoje — o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
O segundo poema é “Da calma e do silêncio”. Na sua primeira estrofe, a metalinguagem faz-se presente na personificação da palavra, como se o ato da criação poética fosse antropofágico:
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Na segunda estrofe, o olhar da poetisa vê aquilo que os versos um dia mostrarão, pois a escrita é também exercício de observação:
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Na terceira estrofe, o eu lírico evidencia a imaginação como impulso criador e a existência de outros mundos, “mundos submersos”, sem estradas, habitados por artistas da palavra:
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
Já na última estrofe, o eu lírico atrela o mundo da imaginação ao da recordação. Dessa maneira, a memória é esse “mundo submerso” e inevitável na “calma e no silêncio” do processo criativo. Assim, inevitável também é a emoção:
Recordar é preciso
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.
Por fim, o poema “Certidão de óbito”, que traz também o resgate da memória — elemento típico das obras da autora —, de forma a entrelaçar passado e presente em um mesmo lugar de opressão e violência. Nele estão evidenciados o sangue e a morte que compõem a história da pessoa negra no Brasil:
Certidão de óbito
Os ossos de nossos antepassados
colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.
Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.
A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.
Notas
|1| A série Cadernos negros é uma publicação, criada em 1978, que traz contos e poemas com temática afro-brasileira, de autores e autoras negras.
Créditos das imagens
[2] Editora Pallas (Reprodução)