Haicai

A mais breve das formas poéticas, o haicai surgiu no Japão, mas se popularizou ao redor do mundo e encontrou muito sucesso na poesia brasileira.
Ilustração de haicais japoneses em livro ilustrado por Yosa Buson em 1799.

De origem japonesa, o haicai é um tipo de poema que se distingue pela brevidade. Chamado de haiku no Japão e em alguns outros países do mundo que também adotaram essa forma poética, o haicai pode ser entendido como uma poesia do cotidiano, pautada pela simplicidade, contemplação, abnegação, aceitação da solidão e também humor. Trata-se de um poema composto de três versos cuja ideia principal é plasmar, por meio das palavras, um momentâneo estado de percepção intensa a respeito da existência, da transitoriedade da vida, de estar diante daquilo que é transcendente.

Esses estados de espírito que conduzem a composição do haicai são oriundos do zen-budismo, espiritualidade presente nas origens desse tipo de poema. O haicai é um desdobramento do waka, um gênero poético que surgiu no Japão do século VII e chegou ao apogeu de sua forma dez séculos depois, com a poesia de Matsuó Bashô (1644-1694). Bashô destacou-se por seu trabalho na pintura e na poesia e foi um grande mestre, deixando uma escola de discípulos conhecida como “haicai Jittetsu” – os dez mestres do haicai.

A forma do haicai popularizou-se em diversos países, ganhando contornos rítmicos e temáticos específicos em cada nação.

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Características do haicai

  • Sintético e breve: a forma do haicai é a síntese por excelência, já que procura a expressão poética em apenas três versos. É necessário que o poeta tenha, portanto, uma expressão depurada que encontre a palavra correta, que busque o uso exato do vocábulo eleito.

  • Simplicidade e espontaneidade: aliada da brevidade, a ideia deve ser exposta de maneira simples, sem vocábulos rebuscados. Além disso, a espontaneidade é mais importante do que quaisquer regras de forma e composição, como a presença de sílabas métricas exatas ou de rimas.

  • Conteúdo imagético e simbólico: a criação dos haicais muitas vezes descreve uma cena, uma imagem, que gera uma impressão sensorial. As imagens também podem ser compostas de simbologias que provocam sensações no leitor.

  • Um fragmento da realidade: o haicai busca captar, como numa fotografia, a brevidade de um momento. É um pequeno registro de uma percepção muito mais intensa a respeito da existência e da transitoriedade da vida. É a apreensão de uma verdade em um instante.

  • Inspiração em elementos da natureza: os fluxos das estações, os ciclos da natureza e seus elementos, como o vento, a terra, o frio, a chuva, os animais, são frequentes pontos de inspiração dos haicais, que buscam ali uma postura meditativa e reflexiva sobre a vida.

Como se faz um haicai?

Para elaborar um haicai, um bom ponto de partida é ler o que alguns autores já escreveram para se familiarizar com a forma (e as possibilidades dentro da forma) particularmente reduzida desse tipo de poema.

Tendo em mente que a proposta do haicai é ser breve, trabalhe sua habilidade de descrição, de maneira objetiva, sintética e precisa. Corte os excessos, reveja as palavras, escolha aquelas que transmitem a sensação de maneira mais clara e mais simples. Você pode partir da descrição pura e simples de uma paisagem, um objeto, uma cor, um som, uma sensação. Atenha-se a coisas concretas, materiais, sem versar sobre sentimentos, o passado ou o futuro. Pense nos versos como uma fotografia do momento feita com as palavras. Como a brevidade é a chave do sucesso, pode ser mais interessante tomar como tema um detalhe de uma cena ou paisagem do que tentar sintetizar uma infinidade de sensações.

A simplicidade é um elemento fundamental. Palavras rebuscadas e ideias abstratas não fazem parte da proposta poética do haicai. Tente estabelecer uma conexão com aquilo que há de mais simples e puro em um instante.

O haicai deve versar sobre uma sensação genuína. Não cabem efeitos calculados nem a pretensão de ser espirituoso ou inteligente.

Não se deixe escravizar pela métrica, mas tente escrever em 17 sílabas métricas ou menos. O haicai brasileiro permite a rima, mas ela não é obrigatória e é até mesmo indesejada em outros idiomas e na forma japonesa.

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Haicai no Brasil

Foi no início do século XX que o haicai chegou ao Brasil, primeiramente com uma seleção e tradução de poemas feita por Monteiro Lobato em 1906 e publicada no jornal O Minarete. O crítico literário Afrânio Peixoto, em 1919, foi o responsável por propor uma primeira forma composicional para o haicai brasileiro – três versos respectivamente contendo cinco, sete e cinco sílabas métricas. Na década de 1930, o poeta e tradutor Guilherme de Almeida adicionou uma nova sugestão composicional às regras do haicai brasileiro: a presença de uma rima interna no segundo verso.

Grafite em técnica de stencil ilustrando o poeta Paulo Leminski acompanhado de seus versos de inspiração haicaísta. [1]

Guilherme de Almeida teve também grande importância na popularização do haicai no Brasil. Em meados do século XX, diversos autores das mais variadas produções poéticas adotaram a forma do haicai, como Haroldo de Campos, Paulo Franchetti, Paulo Leminski, Mario Quintana, Alice Ruiz, Millôr Fernandes, entre outros.

As produções brasileiras diferem bastante das origens orientais do haicai, mais relacionadas aos fluxos sazonais da natureza. Também são muito diferentes entre si: cada autor tomou a liberdade de escrever à sua maneira e não há uma regra métrica estrita para os haicais nacionais. É facultativo o uso ou não de título.

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Exemplos de haicais

Areia

Da estátua de areia
nada restará,
depois da maré cheia.
(Helena Kolody)

Esses versos de Kolody demonstram algumas características próprias do haicai: a observação, o olhar poético voltado para fenômenos da natureza, uma descrição imagética povoada de símbolos que revela uma sensação própria. A estátua de areia faz alusão ao projeto humano, àquilo que criamos, que engendramos na vida e que, como nós mesmos, está sujeito ao ciclo natural da finitude. As marés, que ora sobem, ora descem, também evocam essa noção cíclica: tudo começa, tudo termina. A vida é transitória; o haicai capta os breves instantes que compõem o todo.

Chuva de primavera

Vê como se atraem
nos fios os pingos frios!
E juntam-se. E caem.
(Guilherme de Almeida)

Guilherme de Almeida também se atém à descrição de um fenômeno natural. Sua chuva de primavera parte da observação do detalhe em busca da composição da unidade: cada minúsculo pingo que se junta ao outro, formando a totalidade pluviosa. O poema segue o esquema de rimas proposto pelo próprio poeta: o primeiro verso rima com o terceiro, o segundo verso possui uma rima interna. Há também rigor métrico: 5-7-5 sílabas métricas. Veja:

Vê/ co/mo/ se a/tra/em
nos/ fi/os/ os/ pin/gos/ fri/os!
E/ jun/tam/-se. E/ ca/em.

vazio agudo
ando meio
cheio de tudo
(Paulo Leminski)

Uma das marcas muito presentes nos haicais de Leminski é o humor. Nesse exemplo, Leminski foge completamente da conexão com a natureza e propõe versos subjetivos, contrariando a objetividade descritiva comum a esse tipo de poema. Em vez disso, o poeta reverbera uma sensação desconfortável de saturação e vazio interior, que é delineada com simplicidade e bom humor a partir dos contrastes entre as múltiplas acepções para os vocábulos cheio/vazio.

Couve-flor nas mãos
Uma adolescente ensaia
A marcha nupcial
(Teruko Oda)

Ess haicai de Oda é bastante imagético: descreve uma cena como se construísse uma fotografia. Note que a descrição é bem direta, sem adjetivações. E é a partir do vislumbre dessa cena, desse fragmento da realidade, que podemos desdobrar os sentidos possíveis, fazendo associações simbólicas: a fase transicional da adolescência é em si um prelúdio, às vezes um ensaio para uma vida adulta (aqui representada pelo casamento), repleta também de descontração e brincadeiras – como fazer de uma leguminosa um buquê. O poema segue a forma métrica 5-7-5:

Cou/ve-/flor/ nas/ mãos/
U/ma a/do/les/cen/te en/sai/a
A/ mar/cha/ nup/cial.

fim do dia
porta aberta
o sapo espia
(Alice Ruiz)

Ruiz retoma o universo dos elementos naturais nesse haicai: a hora crepuscular, o momento em que a tarde se torna noite, e o sapo, animal de hábitos noturnos, espreita essa porta que se abre das horas da luz para o momento da escuridão. Há uma suspensão do momento, como se a poeta plasmasse um determinado instante a partir da construção de uma imagem específica. Note que ela usa rimas e um outro esquema métrico (3-3-4).

Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos
(Millôr Fernandes)

Como Leminski, o haicai de Millôr tem sua matéria-prima no dia a dia. É uma atenção ao detalhe, às unidades que formam o todo da passagem do tempo, pouco palpável na existência humana. Embora saibamos a matemática da contagem temporal, que 24 horas completam um dia e que 365 dias somados completam um ano, o poeta nos convoca a perceber essa sucessão para além da simples contagem numérica. É preciso estar atento às pequenas fatias temporais que compõem nossa vida, que formam o todo de nossa existência.

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Exercícios resolvidos

1 – Assinale a única alternativa que não corresponde a características do haicai.

a) Brevidade

b) Repetição

c) Objetividade

d) Simplicidade

e) Conteúdo imagético

Resolução: alternativa b. A repetição não é uma característica específica do haicai.

2 – (Unicentro) Leia o poema a seguir.

casa com cachorro brabo
meu anjo da guarda
                           abana o rabo.

(LEMINSKI, P. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.118.)

O poema é parte do livro Ideolágrimas, que compõe a coletânea Toda Poesia, de Paulo Leminski. A partir da leitura do poema, assim como de conhecimentos prévios sobre a obra poética de Leminski, considere as afirmativas a seguir.

( ) A apresentação formal do poema, com o último verso em desalinho em relação aos outros, contribui para a criação imagética proposta.

( ) A utilização de letras minúsculas no início dos versos, aliada ao uso de termos como rabo e brabo, dá um tom de oralidade ao poema.

( ) O poema destoa dos outros que compõem Ideolágrimas, no que diz respeito à concisão, visto que esse livro é composto por poemas extensos.

( ) O poema dialoga com a estética do Haicai, tradicional forma poética japonesa, em especial no que diz respeito à concisão e ao número de versos.

( ) O poema fala sobre o poder da fé diante dos perigos que a vida oferece. Nesse sentido, ele se liga a uma fase religiosa da produção do autor.

Assinale a alternativa que contém, de cima para baixo, a sequência correta.

a) V, V, V, F, F.

b) V, V, F, V, F.

c) F, V, V, F, F.

d) F, F, V, F, V.

e) F, F, F, V, V.

Resolução: alternativa B.

Créditos da imagem

[1]  Wikimedia Commons (reprodução)

Publicado por Luiza Brandino
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