Maria Firmina dos Reis
Maranhense, Maria Firmina dos Reis, apesar de ter sido esquecida por muitos anos pela crítica literária e pelos agentes literários (editores), foi redescoberta em meados da década de 1970, tendo, assim, seus livros reeditados desde então em várias edições. A autora é hoje considerada a primeira escritora negra de um romance abolicionista no Brasil e vem, cada vez mais, ganhando o destaque merecido, já que morreu pobre e invisibilizada pelos mecanismos patriarcais que tanto combateu.
Leia também: Conceição Evaristo – importante nome da literatura negra contemporânea
Biografia de Maria Firmina dos Reis
Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira escritora negra brasileira, nasceu na ilha de São Luís, no Maranhão, em 11 de outubro de 1822, pouco depois da proclamação da Independência do Brasil. Seu pai era negro, e sua mãe, branca. Foi criada na casa de uma tia materna, onde teve contato com a literatura desde a infância. Seu primo, Sotero dos Reis, com quem convivia, foi gramático na época.
Em razão da proximidade com as letras, tornou-se, em 1847, professora de escola primária, aprovada em concurso público na cidade de Guimarães, interior do estado do Maranhão, atuando nesse ofício até 1881.
Uma passagem marcante de sua carreira como professora deu-se em 1880, quando fundou uma sala mista, ou seja, na qual havia meninos e meninas, algo inadmissível para a época, o que escandalizou a sociedade local.
Em 1859, Maria Firmina publicou Úrsula, romance que ficou invisibilizado por muitos anos, o que expressa a face machista e racista da história da literatura brasileira. Além dessa obra, escreveu poesia, ensaios, histórias e quebra-cabeças em jornais e revistas locais, além de compor canções em defesa do abolicionismo.
Em 1861, escreveu outro romance, Gupeva, dessa vez de temática indianista, o que confirma a consciência crítica da autora acerca das vozes inferiorizadas pelo patriarcalismo vigente na época. Em 1887, publicou na Revista Maranhense o conto “A Escrava”, narrativa que descreve uma participante ativa da causa abolicionista. Seu trabalho, que caiu no esquecimento da crítica literária, só foi redescoberto na década de 1960, momento em que o romance Úrsula passou a ser reimpresso e estudado pelas universidades nacionais. A escritora Maria Firmina dos Reis faleceu, pobre e cega, em 11 de novembro de 1917, na cidade de Guimarães, Maranhão, onde morou desde criança e atuou como professora e escritora.
Contexto histórico
Maria Firmina dos Reis nasceu em 1822, ano em que o Brasil se tornava independente de Portugal. Viveu, portanto, no século XIX, momento histórico marcado, sobretudo, pela escravidão e pelo patriarcalismo, o que constituiu uma sociedade profundamente elitista em todas as regiões do país.
No Maranhão, estado em que a autora nasceu, assim como no Rio de Janeiro e em São Paulo, esse elitismo expressou-se no acesso limitado ao ensino primário e superior, privilégios de poucos. No âmbito do ensino superior, só havia os cursos de Direito e Medicina, que eram extremamente elitizados. Nesse contexto, em que o acesso à educação era extremamente restrito, aqueles que escreviam e publicavam livros constituíam um círculo seleto.
Havia, portanto, uma predominância de escritores brancos, oriundos da classe economicamente privilegiada, os quais usufruíam não só do domínio das letras, mas contavam com recursos para publicar e divulgar seus textos, seja em livros, seja em periódicos. Esses escritores eram predominantemente homens, já que à mulher, mesmo que tivesse condição econômica favorável, era vedada, em razão do machismo enraizado, a participação nos circuitos literários.
As poucas mulheres que enfrentavam o poder do patriarcado para se expressarem na literatura e em outras formas artísticas eram invisibilizadas e acabaram sendo esquecidas pela história oficial, a exemplo da escritora Francisca Júlia, cujo acesso à Academia Brasileira de Letras foi vedado, mesmo que tivesse tido participação na criação dessa instituição.
No interior maranhense, Maria Firmina dos Reis enfrentou as forças históricas do machismo e, além de fundar uma turma escolar mista, em que não havia separação por gênero, escreveu seu primeiro romance em 1959. Assinou-o com o pseudônimo “Uma maranhense”, o que expressava o processo de silenciamento a que eram submetidas as mulheres autoras, o que é confirmado pelo tom de “desculpa” predominante no prefácio de Úrsula:
“Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o risco mofador de outros, e ainda assim o dou a lume.
Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.”
A autora, portanto, já antevia a recepção pouco calorosa de um público não habituado à figura feminina ocupando protagonismo no mundo das letras. Nos jornais da época, por exemplo, eram tímidas as resenhas sobre seu romance. Caída no esquecimento, somente em meados da década de 1970 seu primeiro livro foi reeditado e estudado pelas universidades, o que fez com que o nome da autora começasse a figurar nos manuais de literatura.
Veja também: Carolina Maria de Jesus – autora negra que retratou a favela na literatura
Características literárias de Maria Firmina dos Reis
Quando Maria Firmina dos Reis publicou Úrsula, em 1859, vigorava no país o Romantismo. A autora não ficou alheia às características estéticas desse movimento. Em seu primeiro romance, por exemplo, abordou o amor entre dois jovens brancos, Tancredo e Úrsula, os quais viviam os impasses e conflitos que comprometiam a união do casal. A inovação deu-se no protagonismo concedido pela narração a alguns personagens escravizados, que refletiam sobre as injustiças impostas pela sociedade patriarcal e escravocrata.
Esse teor abolicionista também fez parte do Romantismo, mais especificamente de sua terceira fase, intitulada “condoreira”. A crítica à escravidão esteve presente em outras obras da autora, como no conto “A escrava”, de 1887.
Em 1861, publicou o romance Gupeva, cujo enredo apresenta outro aspecto do Romantismo: o indianismo. Inicialmente publicado em capítulos na imprensa local, teve posteriormente várias edições ao longo da década de 1860.
Em seu livro de poemas Cantos à beira-mar, publicado em 1871, há a prevalência de poemas com forte inquietação subjetiva diante do autoritarismo do patriarcado escravocrata vigente na época de sua publicação. Assim, o eu lírico feminino, intimamente relacionado à biografia da autora, expressa angústia e melancolia, características também recorrentes no movimento romântico.
Obras de Maria Firmina dos Reis
-
Úrsula — romance (1859)
-
Gupeva — romance (1861)
-
Parnaso maranhense — coletânea de poemas junto com outros autores (1861)
-
A escrava — conto (1887)
-
Cantos à beira-mar — poesias (1871)
-
Hino da libertação dos escravos (1888)
Úrsula
Considerado pelos estudiosos como um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina, Úrsula, escrito com o pseudônimo "uma maranhense" em 1859, é pioneiro da temática abolicionista no país, anterior, inclusive, à poesia de Castro Alves, autor do poema Navio Negreiro, publicado em 1880.
O enredo, construído por Maria Firmina dos Reis, apresenta como protagonistas Tancredo e Úrsula, jovens descritos como puros e desprendidos de interesses egoístas. Apaixonados, encontram em seus caminhos obstáculos para a concretização de seu amor, característica comum em muitos romances românticos. Porém, a inovação dessa obra está no protagonismo concedido a personagens escravizados, os quais têm voz e ação na narrativa, como Túlio e Susana.
Esses personagens sofrem a opressão de homens autoritários e cruéis, típicas figuras de um sistema patriarcal e racista fortemente enraizado no Brasil do século XIX. A importância da obra da escritora maranhense, portanto, amplia-se quando se leva em consideração seu lugar de fala, extremamente legitimado, já que ela sofreu na pele, por ser negra e mulher, as violências descritas e denunciadas nas linhas de Úrsula. A seguir, um trecho do romance que expressa a dor daqueles que tiveram o curso de suas vidas, até então libertas na África, desviado à força pelos brancos opressores:
"Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão, fomos amarrados em pé e, para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa".
Crédito da imagem
[1] Editora Pradense (Reprodução)