Bioética
A bioética é um tema da filosofia, mais especificamente da ética, que trata de questões relacionadas ao tratamento ético da vida animal (lembrando que nós, seres humanos, também nos incluímos no conceito de vida animal).
Os gregos antigos diferenciavam a vida por meio de duas palavras:
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Bios: vida individual plena, é o ato de viver e de aproveitar a vida. Para os humanos, bios seria a vida psicológica e subjetiva, participando dela questões como a felicidade e a dignidade.
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Zoé: é a vida fisiológica.
A escolha do radical bios para tratar de bioética tem um motivo: a dignidade. Como tratar a vida animal de maneira digna e ética quando abordamos assuntos polêmicos? É com isso que a bioética preocupa-se.
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O que é a bioética
Bios, para os gregos, complementa-se com zoé, sendo que a vida fisiológica é também bios e vice-versa. Ethos é a palavra que, para os gregos, refere-se ao estudo fundamental e filosófico da moral, pois é a própria palavra que indica costumes e hábitos. A ética nada mais é que a fundamentação da moral, que está embasada nos costumes. Portanto, a bioética é o ramo de estudo filosófico que busca a fundamentação ética do tratamento da vida em seus mais variados aspectos.
A bioética é interdisciplinar. Transitando entre a filosofia, o direito e as ciências humanas, ela procura dar respostas sobre a justa manipulação e tratamento da vida de seres que podem sofrer, ou seja, seres vivos do reino Animalia. As preocupações da bioética alcançam, hoje, outras formas de vida que não a humana, mas ela surge com uma específica preocupação em cima do ser humano por conta das possibilidades que o avanço da medicina e da ciência provocaram na segunda metade do século XX.
A engenharia genética proporcionou enormes possibilidades de interferência humana e científica na forma tradicional de conceber-se a vida. De manipulação genética para a eugenia à possibilidade da clonagem, o ser humano conseguiu várias maneiras de esculpir ou construir a vida em laboratório.
Além disso, as discussões sobre a eutanásia e o aborto ascenderam um acalorado debate entre cientistas, médicos, juristas e religiosos, que apresentaram várias divergências, com cada um defendendo um ponto de vista com base em sua área.
Nas décadas de 1980 e 1990, o debate sobre o vegetarianismo e o veganismo como posturas coerentes com uma sociedade que respeita os animais popularizou-se. A partir disso, a bioética também incorporou em seus estudos o direito dos animais, tratando não somente do abate de animais para o consumo de carne, como da utilização de animais em testes de cosméticos e científicos.
Qual a importância da bioética para a sociedade
Uma sociedade extremamente científica, com as mais variadas maneiras de modificação da vida em laboratório, com a possibilidade de fertilização in vitro, de clonagem, de eugenia, com a utilização de animais em pesquisas e para a alimentação, precisa de um amparo teórico para pensar em tais problemas. Em uma sociedade na qual o sofrimento de um doente terminal pode ser encurtado ou o sofrimento de uma gestação indesejada pode ser evitado, a bioética também serve para oferecer o aparato intelectual e fundamental para estabelecer-se uma discussão justa sobre esses assuntos.
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É ético praticar o aborto e a eutanásia?
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É ético manipular genes em laboratório para melhorar a espécie humana?
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E quando a utilização desse meio tem uma intenção racista?
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E o sofrimento dos animais, deve ser levado em consideração?
A bioética, como quase tudo dentro da filosofia, não fornece respostas, mas fornece problemas e perguntas como essas, que amparam uma discussão justa sobre tais temas.
Princípios da bioética
O filósofo Tom L. Beauchamp e o filósofo e teólogo James F. Childress podem ser considerados os primeiros grandes estudiosos de bioética. Eles escreveram um tratado de bioética chamado Princípios de ética biomédica, considerada obra fundamental por estabelecer os primeiros princípios de um trabalho bioético.
Eles dizem especificamente do tratamento médico, da utilização de seres humanos em pesquisas científicas e da relação paciente e médico ou enfermeiro. No entanto, tais princípios podem ser estendidos a qualquer relação bioética. No livro, os princípios levantados pelos filósofos são:
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Princípio da não maleficência: nunca o paciente ou a cobaia de testes pode ser prejudicado. Existem exceções, por exemplo quando um tratamento pode desencadear algum tipo de prejuízo, mas há, no fim, um benefício maior e desejável.
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Princípio da beneficência: o utilitarismo, corrente filosófica desenvolvida pela primeira vez pelos filósofos ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mill, diz que uma ação ética é aquela que provoca o maior benefício ao maior número de pessoas, além de minimizar o dano. Para Beauchamp e Childress, uma relação bioética não pode ser diferente. Profissionais de saúde e pesquisadores que utilizem a vida em suas pesquisas devem ser utilitaristas.
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Princípio da autonomia: toda pessoa busca a sua autonomia. Beauchamp e Childress buscaram essa ideia de autonomia no filósofo iluminista alemão Immanuel Kant para defender que o paciente deve ser autônomo e decidir se ele aceita ou não o tratamento médico proposto.
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Princípio da justiça: recorrendo ao filósofo estadunidense contemporâneo John Rawls, Beauchamp e Childress colocam a justiça como princípio para qualquer ação que se pretenda ética na manipulação da vida. Buscar uma ação justa é fundamental para que qualquer tratamento da vida possa estabelecer-se eticamente.
Veja mais: Existencialismo – campo da filosofia que se propõe a analisar o ser humano em sua concretude
Temas da bioética
Os temas tratados pela bioética são os mais variados bem como são, em sua maioria, tabus de nossa sociedade. O ser humano trata com estranheza e dificuldade algumas coisas de difícil resolução, como o aborto e a eutanásia. Também tratam com estranheza alguns temas relacionados à pesquisa científica. Os tópicos seguintes dizem respeito a temas estudados pela bioética:
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Médico e paciente/cientista e cobaia
Os princípios da bioética fundamentam uma relação que se suponha correta e eticamente fundamentada entre cientista ou médico, que, por sua posição de autoridade, têm também um certo poder na relação com seus pacientes ou cobaias, que são partes mais fracas nas relações de poder.
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Aborto
Filósofo australiano, Peter Singer é um dos principais estudiosos de bioética da atualidade. Em seu livro Ética prática, Singer defende o aborto como uma prática que, se feita até a 12ª semana de gestação, não provoca sofrimento ao feto e evita o sofrimento futuro da mãe de uma gestação indesejada e da criança que crescerá sem condições materiais de existência.
A posição de Singer está baseada na ciência, na medicina e em algo que ele sempre coloca para fundamentar suas decisões bioéticas: a senciência. Para o filósofo, a senciência é o ato de sentir dor e prazer, o que leva o indivíduo a perceber-se como alguém no mundo. Diferente da consciência, que é a capacidade de pensar-se no mundo, a senciência apenas sente.
O feto, até a 12ª semana de gestação, ainda não tem atividade cerebral, o que impossibilita a senciência e, consequentemente, qualquer chance de sofrimento por parte daquele ser que foi, na maior parte do tempo, um emaranhado de células embrionárias em crescimento.
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Utilização de células-tronco embrionárias
É possível retirar de um embrião abortado as células-tronco, que são como células que conseguem replicar vários tecidos do corpo humano. Hoje existem tratamentos com células-tronco que retardam doenças degenerativas, como esclerose múltipla, e recuperam partes significativas de tecidos cerebrais e nervosos danificados, podendo até devolverem parte de movimentos de braços e pernas perdidos por pacientes que sofreram lesões na coluna vertical.
Para capturar tais células, é necessário utilizar um embrião abortado ou gerado em laboratório sem fim reprodutivo. Para algumas concepções religiosas, isso é um pecado. Para certas visões bioéticas, entre elas a de Singer, é uma ação legítima que segue o princípio da utilidade.
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A eutanásia e o suicídio assistido
A palavra eutanásia vem do grego e significa, literalmente, boa morte. É a prática de encerrar-se uma vida que sofre e que não tem (ou quase não tem) chance de recuperação de uma vida digna. A eutanásia é praticada em animais domesticados, como cachorros, gatos e cavalos. Para encurtar o sofrimento de animais doentes ou acidentados que não podem recuperar uma vida digna, o ser humano aplica neles uma morte digna e sem dor.
O suicídio assistido é uma espécie de eutanásia praticada por vontade própria, em que a própria pessoa que sofre opta por uma morte digna para encerrar o sofrimento da vida indigna. A questão é: se nos animais é tão normal, o que nos difere deles a ponto de obrigar-nos ao sofrimento e a uma vida indigna?
Peter Singer é um dos defensores da eutanásia e do suicídio assistido na atualidade. A legislação suíça permite o suicídio assistido, e há, na Suíça, a primeira ONG (Dignitas) que presta auxílio a quem deseja acabar com o próprio sofrimento.
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Direitos dos animais
Os animais têm direito à vida? Eles têm direito a uma vida livre, digna e sem sofrimento provocado por agentes humanos? O ser humano pode utilizar os animais como se fossem objetos? Essas e outras questões a respeito da utilização animal entram em cena quando falamos de bioética e direitos dos animais.
Peter Singer, por exemplo, defende o vegetarianismo e a abolição da utilização de animais em testes laboratoriais e médicos. Essa visão pode conflitar com o princípio utilitarista de Beauchamp e Childress, visto que a utilização de animais pode atender a um certo benefício humano. O aspecto conflitante deve ser debatido para que se estabeleça até que ponto podemos utilizar os animais para nosso próprio benefício.