Lei do Ventre Livre
A Lei do Ventre Livre entrou em vigor no dia 28 de setembro de 1871, sendo conhecida como uma das leis abolicionistas aprovadas no Brasil a partir de 1850. Essa lei propôs uma reforma da escravidão no Brasil, determinando que os filhos de mães escravizadas, nascidos a partir da sua data de aprovação, fossem libertos.
A lei foi proposta pelo Visconde do Rio Branco, com envolvimento direto do imperador, um defensor de que reformas deveriam acontecer na escravidão no Brasil. A lei causou divisões profundas entre deputados do Norte e Sul do Brasil, e depois, sua aprovação trouxe mudanças significativas, permitindo o fortalecimento do movimento abolicionista.
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Trabalho escravo no século XIX
O trabalho escravo foi assunto que rendeu muitos debates políticos no Brasil ao longo do século XIX. Questões relativas ao tráfico negreiro, ao trato dos escravos e à manutenção ou abolição dessa instituição tiveram muito espaço na agenda política brasileira e foram discutidas à exaustão.
A possibilidade de abolir a escravidão no Brasil era um assunto debatido há tempos, embora, no começo do século XIX, essa ideia não fosse bastante popular. No contexto da independência do Brasil, o patrono da independência, José Bonifácio, era um dos que defendiam que a escravidão deveria ser abolida.
Ele e outros defensores, na década de 1820, defendiam a abolição porque acreditavam que o trabalho livre assalariado seria mais benéfico para o Brasil, além de terem ideias racistas de promover o branqueamento da população brasileira. A defesa da abolição deles, portanto, não partia de visões humanistas.
Na década de 1850, a grande questão no Brasil estava concentrada nas ações a serem tomadas para combater-se o tráfico negreiro, proibido desde a promulgação da Lei Eusébio de Queirós. Essas questões estenderam-se por toda essa década, mas, em alguns anos, o tráfico negreiro praticamente tinha deixado de existir no Brasil.
A partir de 1860, o debate começou a ganhar outro contorno: a escravidão deveria ser abolida? E se o fosse, esse processo seria repentino ou realizado por reformas que o fariam gradual? Logicamente, havia aqueles que defendiam a abolição e aqueles que defendiam a sua manutenção.
Motivos para reformar a escravidão
A defesa da abolição começou a ganhar espaço no Brasil porque o tráfico tinha sido abolido e sabia-se que era uma questão de décadas até que a escravidão fosse virtualmente abolida. Externamente, o país começou a ver-se isolado, uma vez que o trabalho escravo começou a ser abolido em uma série de locais.
A servidão tinha acabado na Rússia em 1861; os Estados Unidos tinham abolido a escravidão em 1865; Portugal tinha abolido a escravidão em suas colônias em 1858; e outros países da Europa faziam o mesmo. Além disso, na América do Sul, o Brasil era o único a manter o trabalho escravo, e durante a Guerra do Paraguai, isso se tornou motivo de embaraço para o governo brasileiro.
Somente o Brasil e duas colônias espanholas (Cuba e Porto Rico) mantinham o trabalho escravo, e, nas colônias espanholas, medidas já estavam sendo tomadas para reformar essa instituição. Apesar de o cenário ter possibilitando que a causa abolicionista ganhasse força, a resistência entre os políticos brasileiros a qualquer debate que caminhasse para a abolição ainda era forte.
Todos os debates que procuraram estender as medidas do fim do tráfico à condição dos escravizados foram barrados na década de 1850 e só começaram a ser ventilados na década de 1860, porque um dos incentivadores era o imperador. Em 1865, d. Pedro II pediu para um de seus conselheiros, José Antônio Pimenta Bueno, um estudo sobre a possibilidade de abolição no Brasil.
Pimenta Bueno propôs que a abolição fosse iniciada por uma reforma que abolisse a escravidão dos filhos dos escravos. A proposta foi levada para o Conselho de Estado por duas vezes, sendo que, na primeira, em 1866, sua discussão não foi aceita, e na segunda, em 1867, decidiu-se que aquele não era o momento para ela.
A Guerra do Paraguai foi usada como justificativa para adiar qualquer medida contra a escravidão no Brasil. O assunto foi temporariamente engavetado, mas d. Pedro II relembrou aos parlamentares da importância da questão em 1867 e 1868.
Os escravocratas alegavam que a abolição não deveria ser feita por meio de reformas porque isso poderia motivar os escravos a rebelarem-se. Os abolicionistas retrucavam que as reformas eram necessárias justamente para evitar que rebeliões de escravos acontecessem. Seus argumentos apontavam a importância das reformas para evitar que os exemplos do Haiti e dos Estados Unidos acontecessem no Brasil.
Por fim, abolir a escravidão por meio de reformas graduais era visto com bons olhos por alguns porque daria tempo para os grandes fazendeiros adaptarem-se ao trabalho assalariado, impedindo assim que grandes prejuízos acontecessem. Além disso, alegava-se que um processo gradual evitaria o país de sofrer baques econômicos e permitiria realizar a abolição de maneira pacífica.
Ventre livre na pauta política
Vimos então que as discussões propostas pelo imperador, sobretudo na questão do ventre livre proposta por Pimenta Bueno, não avançaram. A proposta de Pimenta Bueno consistia em dar a liberdade aos filhos de escravizados, sendo que os homens conquistariam-na com 21 anos, e as mulheres, aos 16 anos de idade.
A proposta de reforma continuava na pauta do imperador, uma vez que a ideia de criar mecanismos que acabassem com a escravidão para gerações futuras soava-lhe agradável porque não oneraria o Estado e adiaria o problema para um futuro não muito distante. Apesar da questão do ventre livre não ter avançado nos idos da guerra, a escravidão ainda era debatida na Câmara.
Uma proposta relativa à escravidão colocou fim nos leilões de escravos em 1869. O decreto nº 1695 foi aprovado em 15 de setembro de 1869, determinando que os leilões públicos estavam proibidos e o desrespeito a essa lei seria passível de multa de até 300 mil réis por escravo leiloado. O decreto também impedia a separação de casais de escravos e a separação dos filhos dos escravos com menos de 15 anos. Reconhecia-se, portanto, a existência de famílias de escravizados.
A proposta do ventre livre retornou à pauta política quando o Visconde do Rio Branco assumiu o Conselho do Estado em março de 1871. A proposta do visconde de abolir a escravidão para os filhos dos escravos gerou debates políticos acirrados, e o historiador José Murilo de Carvalho afirma que os registros das sessões descreveram verdadeiros tumultos|1|.
Os debates foram acalorados e reforçaram as diferenças entre as províncias do Norte do país, em grande parte defensoras do projeto do ventre livre, e as províncias do Sul, em geral opositoras do projeto. Além disso, a proposta criou divisões internas nos partidos. No caso dos conservadores, havia insatisfação pelo fato do visconde ter abraçado uma causa que era dos liberais, e os liberais dividiram-se entre apoiar ou não uma proposta do outro partido.
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Lei do Ventre Livre
A votação da Lei do Ventre Livre aconteceu, e sua aprovação deu-se com 61 votos a favor e 35 contra. Considera-se que a aprovação da lei foi em parte resultado do apoio dos deputados das províncias do Norte do país e da pressão realizada pela própria Coroa. A Lei do Ventre Livre entrou em vigor no dia 28 de setembro de 1871.
O que dizia a Lei do Ventre Livre? O primeiro artigo já definia o que ela determinava: “os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data dessa lei, serão considerados de condição livre|2|”. A lei, no entanto, estabelecia as condições em que essa liberdade aconteceria e determinava que o senhor de escravos teria de cuidar dos filhos da mulher escrava até certa idade.
Quando o filho da escrava completasse oito anos, o senhor poderia libertá-lo em troca de uma indenização, que seria paga pelo Estado. A indenização era de 600 mil réis e seria acrescida com 6% de juros ao ano. A outra opção era permanecer com o filho da escrava até os 21 anos de idade. Nesse caso, o senhor de escravos não seria indenizado.
A lei ainda permitia que o filho da escrava poderia livrar-se do seu tempo de serviço caso tivesse condições de pagar uma indenização ao senhor de escravos. Este perderia seus escravos caso ficasse constatada a prática de castigos excessivos. A lei também previa a criação de um fundo para que o Estado pudesse pagar as indenizações previstas no texto.
O último destaque a ser feito dessa lei é o que constava no artigo 8. Esse artigo tornava obrigatório que os senhores de escravos registrassem os seus escravos em uma matrícula que seria criada pelo governo. Os senhores de escravos teriam até um ano para fazerem o registro, e, caso não fizessem isso dentro do prazo, seus escravos seriam considerados libertos.
Esse ponto da lei trouxe repercussões consideráveis para o Brasil no longo prazo. Como demonstraram as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, antes da lei, os negros eram obrigados a provar a sua liberdade por meio de uma carta de alforria, mas, com a Lei do Ventre Livre, esse ônus agora era transferido para o senhor de escravos. Ele era obrigado a comprovar por meio dessa matrícula que tinha posse dos seus escravos|3|.
A existência dessa matrícula de escravos foi explorada pelos abolicionistas, que vasculhavam os cadernos atrás de irregularidades nas matrículas. Quando encontravam alguma, a Justiça era acionada para exigir a liberdade do escravo envolvido. A Justiça também era acionada para forçar senhores de escravos a aceitarem as indenizações para libertar seus escravos.
A lei, no entanto, era conservadora e foi criada com o intuito de prorrogar o fim da escravidão no Brasil. Ela ainda foi redigida de maneira que não prejudicasse a relação do senhor com seus escravos. Ela serviu também para enfraquecer temporariamente o movimento abolicionista, mas, no longo prazo, serviu como fator de deslegitimação da escravidão no território brasileiro.
Notas
|1| CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 308.
|2| Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Para acessar, clique aqui.
|3| SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 300.
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