Graciliano Ramos
O escritor Graciliano Ramos inovou, na década de 1930, a produção de romances regionais no Brasil. Ao associar à narração e à descrição do espaço geográfico regional a construção de personagens com uma profunda dimensão psicológica, mergulhadas em tensões e conflitos que espelham as dificuldades exteriores, o autor deu à sua obra um caráter universal. Com uma linguagem próxima à oralidade, prezando a objetividade e a economia no uso de adjetivos, a obra de Graciliano é reveladora de um Brasil em crise, em que os mais pobres são suas principais vítimas.
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Biografia de Graciliano Ramos
Graciliano Ramos nasceu em 1892, na cidade de Quebrângulo, Alagoas, e faleceu em 1953. Atuou como jornalista e político, tendo exercido o cargo executivo de prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas. Sua estreia na literatura ocorreu com a publicação, em 1933, do romance Caetés.
Em Maceió, Alagoas, atuou como dirigente da Imprensa Oficial e da Instrução Pública. Nesse contexto, conheceu os escritores José Lins do Rego (1901-1957), Rachel de Queiroz (1910-2003) e Jorge Amado (1912-2001), os quais, com Graciliano Ramos, são os principais romancistas da segunda fase do modernismo, conhecida como a Geração de 30 e marcada pela produção de romances regionalistas.
Em março de 1936, em razão de suas atividades políticas, consideradas subversivas, foi preso, durante o governo do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), sem, no entanto, ter sido acusado formalmente, sendo libertado somente em janeiro de 1937.
Em 1945, com o fim da ditadura varguista e o retorno da normalidade democrática, Graciliano Ramos filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), permanecendo nele até 1947, ano em que o partido foi novamente considerado ilegal. Em 1952, viajou para os países socialistas do Leste Europeu, experiência que descreve no livro Viagem, publicado postumamente, em 1954.
Características literárias de Graciliano Ramos
A obra de Graciliano Ramos apresenta como características principais, no que se refere aos aspectos formais, o uso de uma linguagem objetiva, o que fazia parte de um projeto da segunda fase do modernismo brasileiro, classificada como regionalista.
A construção de uma linguagem próxima à oralidade, desvinculada de uma estética academicista, característica do movimento literário que antecedeu o pré-modernismo e o modernismo, objetivava, nos gêneros narrativos, a configuração de personagens e de enredos próximos à realidade brasileira, sobretudo àquela vivenciada no meio rual, em especial no Nordeste do país.
Em muitos de seus livros há, inclusive, reflexões metalinguísticas, como se observa neste trecho do “Capítulo 1” de São Bernardo, ocasião em que o narrador-protagonista mostra-se irritado com o modo como Azevedo Gondim escreveu parte do livro que havia encomendado a ele:
“— Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala. — Não pode? Perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode. — Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.”
Além do aspecto linguístico, outra característica fundamental da obra de Graciliano Ramos diz respeito à construção das personagens, as quais apresentam uma dimensão psicológica complexa, o que faz com que as obras em que são protagonistas tenham uma abrangência universal, já que manifestam problemáticas comuns a qualquer outro ser humano, apesar de serem ambientadas em um cenário regional.
Portanto, o aspecto regionalista de Graciliano, manifesto em enredos ambientados no sertão, na Caatinga, em latifúndios ou na cidade, tem o propósito de, pelas particularidades do que é regional, alcançar o universal, ou seja, o que antes de tudo é típico da condição humana. Esse aspecto manifesta-se nos dramas e nas inquietações psicológicas de homens e mulheres marcados pela tensão de uma vida determinada pelos meios geográfico, político, cultural e econômico que os cercam.
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Lista de obras de Graciliano Ramos
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Livros publicados em vida
- Caetés (1933) – romance;
- São Bernardo (1934) – romance;
- Angústia (1936) – romance;
- Vidas secas (1938) – romance;
- A Terra dos Meninos Pelados (1939) – contos infantil juvenil;
- Brandão entre o mar e o amor (1942) – romance escrito com Jorge Amado, José Lins do Rego, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz;
- História incompletas (1946) – contos;
- História de Alexandre (1944) – contos.
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Livros publicados postumamente
- Linhas tortas (1962) – crônicas;
- Viventes das Alagoas (1962) – crônicas;
- Viagem (1954) – crônicas de viagens;
- Alexandre e outros heróis (1962) – contos infantil juvenil;
- Cartas (1980) – correspondências;
- O estribo de prata (1984) – conto infantil juvenil;
- Cartas de amor à Heloísa (1992) – correspondências;
- Garranchos (2012) – textos inéditos;
- Minsk (2013) – conto infantil juvenil;
- Cangaços (2014) – textos inéditos;
- Conversas (2014) – textos inéditos.
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Obras traduzidas por Graciliano Ramos
- Memórias de um negro (1940), de Booker T. Washington;
- A peste (1950), de Albert Camus.
Principais obras de Graciliano Ramos
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São Bernardo
Esse romance, publicado em 1934, é narrado na primeira pessoa do discurso por Paulo Honório, antigo trabalhador rural que consegue comprar a fazenda em que trabalhara no passado, chamada São Bernardo, empreendendo, para isso, negociações questionáveis eticamente. Após reestruturá-la, Paulo Honório torna-se um fazendeiro influente na região.
Sentindo que precisava de um herdeiro para o patrimônio que estava constituindo, ele se casa com uma mulher mais jovem, Madalena, uma professora do interior com quem tem, já no início da relação, embates e brigas por pensarem de modo diferente acerca de várias questões, como a relação patrão e empregado.
Essas duas personagens sintetizam o pensamento polarizado que já havia no país na década de 1930: enquanto Paulo Honório mostra-se como um típico capitalista interessado unicamente em prosperar economicamente às custas da exploração da força de trabalho de seus funcionários, sua esposa mostra-se solidária em relação a eles. Após a morte de Madalena, Paulo Honório, mergulhado em remorso e arrependimento, decide escrever um livro para passar sua vida a limpo.
“Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era menor.”
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Angústia
Esse romance, publicado em 1936, quando Graciliano Ramos ainda se encontrava preso pela polícia política de Getúlio Vargas, é narrado por Luís da Silva, um funcionário público e jornalista sem projeção profissional, que acumula frustrações e perdas em sua vida. Desde a sua fracassada mudança de Maceió para o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições, ao término de seu noivado com Marina, que o traia com Julião Tavares, o rival, são muitas as angústias de Luís da Silva.
Nem o passado remoto deixa-lhe em paz, já que lhe vem à memória, nesse processo de remoer suas perdas, cenas de uma infância com pouco afeto familiar. Inconformado com a traição e mergulhado em pensamentos negativos, como o ódio que nutre por Julião Tavares, jovem rico e bem-sucedido, o seu oposto, o protagonista, sempre se sentindo inferiorizado, decide romper de uma forma ou de outra esse estado psicológico. Decide, portanto, matar seu rival, personagem que simboliza a opressão que constantemente sente, principalmente após descobrir que sua ex-noiva está grávida de um filho com esse desafeto:
Isto me cortava o coração e aumentava o meu ódio a Julião Tavares. Vi-o claramente como o vi na tarde em que o surpreendi à minha janela, derretendo-se para Marina. Atrapalhado, procurara tapear-me com adulações. Eu resmungava pragas obscenas e andava de uma parede a outra, sentia desejo imenso de fugir, pensava na fazenda, em Camilo Pereira da Silva, em Amaro vaqueiro e nas cobras, especialmente numa que se enrolara no pescoço do velho Trajano.”
- Vidas secas
Publicado em 1938, Vidas secas retrata a vida miserável de uma família de retirantes nordestinos que, vitimada pela seca, deixa o sertão em busca de sobrevivência. Constituído por 13 capítulos, que têm uma certa autonomia, esse romance, considerado o mais importante da segunda fase do modernismo, marcada pela ambientação regionalista, é inovador principalmente em relação ao foco narrativo.
Como os capítulos dão destaque aos personagens separadamente, Fabiano e Sinhá Vitória, acompanhados dos dois filhos e de uma cachorra chamada Baleia, têm sua subjetividade, inclusive o animal, apresentada por meio da onisciência múltipla, técnica narrativa em que o enredo revela-se com base nas impressões que fatos e pessoas deixam nos personagens, os quais recuperam situações e cenas mentalmente, o que vai compondo a história.
Fabiano, sua mulher e seus filhos são privados não só de casa e de alimentação, mas também de linguagem, já que utilizam um vocabulário limitado, às vezes completado por sons guturais e construções sintáticas truncadas. Nesse sentido, o foco narrativo centrado na consciência dos personagens é um modo de suprir essa fala truncada. Observe um dos trechos em que a onisciência múltipla centra-se nos pensamentos de Fabiano:
“Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual a de seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau. Olhou a caatinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta verde.”
Frases de Graciliano Ramos
“A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso. A palavra foi feita para dizer.” (Em entrevista a Joel Silveira, 1948)
“A arte é a antítese da sociedade.” (Vidas secas)
“Escolher marido por dinheiro. Que miséria! Não há pior espécie de prostituição.” (Angústia)
“Se a única coisa que de o homem terá certeza é a morte; a única certeza do brasileiro é o carnaval no próximo ano.” (Angústia)
“A água lava tudo, as feridas mais graves cicatrizam.” (Angústia)
“Se a igualdade entre os homens — que busco e desejo — for o desrespeito ao ser humano, fugirei dela.” (Angústia)
“É fácil se livrar das responsabilidades. Difícil é escapar das consequências por ter se livrado delas.” (Angústia)
“A primeira coisa que nos diz uma obra de arte é que o mundo da liberdade é possível, e isso nos dá força para lutar contra o mundo da opressão.” (Vidas secas)
“As mulheres não são de ninguém, não têm dono.” (Angústia)
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Curiosidades sobre Graciliano Ramos
Uma curiosidade da vida de Graciliano Ramos refere-se ao período em que era prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, no interior alagoano. Como administrador desse município, enviou dois relatórios anuais ao então governador de Alagoas, Álvaro Correia Paes. Esses relatórios, publicados na Imprensa Oficial do Estado, chamaram a atenção dos jornais do Rio de Janeiro, ficando conhecidos em todo o país, sobretudo em razão de sua linguagem literária, metafórica, fugindo aos padrões do gênero relato, extremamente descritivo e objetivo.
Veja alguns trechos do último relatório, referente ao ano de 1929:
“(...) Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequenos senhores feudais, exploradores da canalha, suprimi nas questões rurais a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte, estimulei as relações entre o produtor e o consumidor; esforcei-me por não cometer injustiças. Isso não obstante, atiraram as multas conta mim como arma política. (…) Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me (…).”
Outra curiosidade de Graciliano Ramos diz respeito ao fato de que nunca aceitou submeter seus escritos à apreciação do Comitê Central do Partido Comunista, o que era comum entre os escritores militantes da causa, como Jorge Amado. Para Graciliano, o escritor, apesar de comprometido com a luta política, deveria manter sua independência criativa e sua liberdade de estilo. Por isso, não assimilou as regras do realismo socialista, escola literária consagrada na União Soviética.
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[1] Renata Tizzo / Shutterstock