Lima Barreto
Lima Barreto, principal escritor do pré-modernismo brasileiro, autor do clássico Triste fim de Policarpo Quaresma, sua obra mais conhecida, situa-se como a voz mais crítica da literatura produzida no Brasil no início do século XX. Mestiço, com descendência direta de afrodescendentes, ele não ficou alheio às injustiças e aos preconceitos que recaiam sobre seus semelhantes e sobre si. Recusado três vezes pela Academia Brasileira de Letras, Barreto morreu sem o merecido reconhecimento. No entanto, atualmente, sua obra e sua vida têm sido revisitadas, não restando dúvidas de que a força de sua literatura ainda se faz muito contemporânea.
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Biografia de Lima Barreto
Afonso Henriques de Lima Barreto, conhecido no meio literário como Lima Barreto, nasceu no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1881, exatamente sete anos antes da abolição da escravatura no Brasil. Filho de João Henriques de Lima Barreto, operário gráfico de jornais da época, e de Amália Augusta Barreto, professora, ambos afrodescendentes, tinha como avó uma escrava liberta, Geraldina Leocádia da Conceição, cuja mãe, Maria da Conceição, havia sido traficada da África para o Brasil em um navio negreiro.
Como sua mãe exerceu o magistério, coube a ela ser a primeira professora de Lima Barreto. Entretanto ela não pôde ensinar muito ao filho, pois faleceu cedo, vitimada pela tuberculose, quando ele tinha sete anos de idade. Com o auxílio de seu padrinho de batismo, o Visconde de Ouro Preto, Lima Barreto completou o ensino ginasial no colégio Pedro II, importante instituição de ensino da época.
Em 1897, com o objetivo de tornar-se engenheiro, ingressou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, no entanto, as condições financeiras da família, agravadas com a doença mental que vitimava seu pai, fizeram com que interrompesse o curso a fim de ajudar no sustento familiar.
Em 1902, o jovem Lima Barreto inicia a atuação na imprensa estudantil, ocasião em que também se muda com sua família para o subúrbio do Rio de Janeiro, em função de seu ingresso, via concurso público, na Secretaria da Guerra. Esse trabalho possibilitou-lhe que destinasse um tempo maior à escrita literária, tendo produzido, a partir daí, romances, crônicas, artigos, memórias, ou seja, o conjunto de sua obra começou a ser constituído.
Sua carreira foi permeada por situações que o colocaram diante de discriminação racial, como quando tentou, por três vezes, sem sucesso, ingressar na Academia Brasileira de Letras. Sem conseguir o reconhecimento que almejava, mesmo já tendo uma obra considerável, Lima Barreto começou a beber e tornou-se alcoólatra.
Por duas vezes foi internado, em razão desse alcoolismo, no Manicômio Nacional, a primeira vez, em 1914, e a segunda, em 1918. No entanto, mesmo no manicômio, seu espírito crítico e atento às injustiças sociais não ficou alheio à discriminação sofrida pela população negra ali encarcerada. Como protesto, iniciou a escrita de um livro, Cemitério dos vivos (publicado postumamente em 1953), relatando o que vivenciou nos seus anos de internação.
Lima Barreto morreu sem o reconhecimento que tanto almejava, vitimado por um colapso cardíaco, em 1º de novembro de 1922, solteiro, com 41 anos, mas deixou uma vasta e importante obra, reveladora não só das contradições e das injustiças do Brasil da época em que viveu, mas também de problemas ainda presentes na contemporaneidade.
Características literárias de Lima Barreto
As obras de Lima Barreto têm, geralmente, um acentuado teor social, resultado de seu aguçado senso crítico, que o faz presentificar em suas narrativas as injustiças e as misérias da vida suburbana carioca, tendo, muitas vezes, como plano de fundo, a mediocridade da burguesia indiferente e exploradora, a sanha por poder de autoridades inescrupulosas, incompetentes e autoritárias.
O autor soube extrair de seu próprio cotidiano de homem mestiço, descendente de negros escravizados, elementos para narrar o sofrimento advindo do preconceito racial e da vulnerabilidade social dos que viviam à margem.
Observe o modo como o autor descreve, em Triste fim de Policarpo Quaresma, a falta de planejamento das periferias do Rio de Janeiro:
“Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria de edificação de cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influiu decerto para tal aspecto, mais influíram, porém, os azares das construções.
Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fizeram. Há algumas delas que começam largas como bulevares e acabam estreitas que nem vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado.”
Muito atento ao seu próprio tempo, Lima Barreto transpôs para sua ficção importantes acontecimentos da república brasileira, como a crítica, presente principalmente em Triste fim de Policarpo Quaresma, ao nacionalismo exacerbado e utópico, característica muito cultivada pelo romantismo no século XIX. Ainda nessa obra, critica o autoritarismo militar resultado da ditadura implementada por Floriano Peixoto.
Em seus romances, contos e crônicas, o leitor é levado a ser defrontado, portanto, com a questão racial, pauta ainda pertinente, com a hipocrisia das relações sociais envoltas em interesses econômicos e em prestígio social, com as consequências da busca desenfreada pelo poder político.
Além disso, a visão progressista de Barreto evidencia-se também no modo como utiliza a linguagem, já que não faz uso de um estilo complexo e elitizado, como estava tão em voga pelos parnasianos da época. Ao contrário disso, o autor utiliza um estilo leve, procurando reproduzir um discurso próximo da oralidade, o que deu subsídio aos ideais defendidos pelos modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922.
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Obras de Lima Barreto
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Obras publicadas em vida
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Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) - romance
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Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) - romance
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Numa e ninfa (1915) - romance
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Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919) - romance
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Histórias e sonhos (1920) - conto
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Obras publicadas postumamente
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Bagatelas (1923) - romance
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Os bruzundangas (1923) - romance
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Clara dos Anjos (1948) - romance
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Diário íntimo (1953) - memórias
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Feiras e mafuás (1953) - artigos e crônicas
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Marginália (1953) - artigos e crônicas
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Cemitério dos vivos (1956) - memórias
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Coisas do reino de Jambom (1956) - sátira
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Impressões de leitura (1956) - crítica
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Vida urbana (1956) - artigos e crônicas
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Correspondência - ativa e passiva (1957) - correspondências
Triste fim de Policarpo Quaresma
O romance Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado inicialmente em folhetim, situa-se como uma das principais obras do período do pré-modernismo brasileiro. Contextualizada no final do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, essa narrativa tem como centro do enredo os ideais e as frustrações de Policarpo Quaresma, um funcionário público cumpridor de seus deveres e extremamente patriota.
Seu patriotismo, porém, beira ao fanatismo, afinal, muito ingênuo e idealista, uma espécie de Dom Quixote brasileiro, propõe a substituição da língua portuguesa, como língua oficial, pela língua indígena tupi, no que é prontamente rechaçado e tido como louco, rendendo-lhe uma internação no hospício.
Após esse episódio, já aposentado do serviço público, Policarpo Quaresma dedica-se à agricultura em seu sítio, esperançoso de que o solo do país lhe proporcionaria fartura. No entanto, ao contrário do que imaginava, vê-se diante de uma desanimadora realidade: ataque de formigas saúvas, as quais lhe impedem de fazer boas colheitas, aliado à infertilidade do solo.
Tendo como plano de fundo a política da Primeira República do Brasil, a narrativa situa Quaresma interagindo com esse contexto ao dar apoio ao então presidente do país, o marechal Floriano Peixoto, quando a Revolta da Armada foi desencadeada contra esse governante. Atuando voluntariamente como carcereiro, não consegue ficar alheio às injustiças e às brutalidades que vê sendo cometidas contra os presos e faz inúmeras críticas a essa postura do governo. Em função dessas críticas, é preso e condenado, por ordem do próprio Floriano Peixoto, a quem apoiava, ao fuzilamento.
A obra, portanto, trata, apesar de ter passagens cômicas, do modo como tendem a ser tratadas aquelas pessoas que nutrem um ideal frente a situações administradas por aqueles que apenas se preocupam com seus próprios interesses. Lima Barreto expõe, em Triste fim de Policarpo Quaresma, as contradições da sociedade e da política brasileira, ainda presentes na contemporaneidade, o que torna esse clássico da literatura atemporal. Observe o fragmento do último capítulo, quando Policarpo encontra-se preso, após ser denunciado por Floriano Peixoto:
“Por que estava preso? [...] Entretanto, ele atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente, protestando contra a cena que presenciara na véspera.
Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante dos seus olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, franca e nitidamente.
Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, engaiolado, trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma fera, como um criminoso, sepultado na treva, sofrendo umidade, misturado com os seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como acabarei? [...]
O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar mais a vitória e senti-la bem na consciência coisa sua, própria, e altamente honrosa.
Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o.[...]
O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções.”
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Frases de Lima Barreto
“O Brasil não tem povo, tem público.”
“Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil.”
“E desse modo ele ia levando a vida, metade na repartição, sem ser compreendido, a outra metade em casa, também sem ser compreendido.”
“Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa.”
“Ele alegrou os outros e nunca teve alegria.”
“O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança como um deslumbramento.”
“Seu olhar, sempre enxuto e polido, tinha alguma névoa úmida, uma angustiosa expressão de dor de quem não sabe ou não quer chorar.”
“Quem tem inimigos deve ter também bons amigos.”
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