Tipos de narrador
Você conhece os principais tipos de narradores que um texto literário pode ter? E também sabe o que é foco narrativo? O ato de narrar histórias acompanha a trajetória do homem há muito tempo. Inicialmente se manifestando de forma oral, a narração era conduzida por um contador de histórias, que trazia aos ouvintes lendas, contos, fábulas, seja em 1ª pessoa ou em 3ª pessoa do discurso, ou seja, ele podia se colocar na história contada como um participante das ações, no caso de se narrar em 1ª pessoa, ou como alguém que está de fora dos acontecimento e os transmite a outros.
Com o surgimento da escrita, essas narrativas passaram a ser registradas no papel e, com o passar do tempo, outras histórias foram sendo escritas, o que exigiu de seus escritores criatividade para comporem enredos com personagens, tempo, espaço e narrador atrativos ao público leitor. Assim, esse aperfeiçoamento da narração, ao longo do tempo, possibilitou o desenvolvimento de variados tipos de narrador, os quais não podem, hoje, serem caracterizados unicamente como de 1ª ou de 3ª pessoa.
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Foco narrativo
Os textos narrativos têm como elementos básicos de sua constituição a presença de personagens, tempo, espaço e narrador, os quais compõem o enredo da história narrada. Em relação ao narrador, os estudos literários tendem a englobá-los dentro da categoria “foco narrativo”.
Esse conceito diz respeito ao enfoque dado pelo autor à voz que narra, ou seja, se a ênfase é dada a uma voz narrativa em 1ª pessoa, diz-se que o foco narrativo é de 1ª pessoa, ao passo que se a ênfase é dada a uma voz narrativa em 3ª pessoa, diz-se que o foco narrativo é de 3ª pessoa. Esses dois focos narrativos principais, porém, podem apresentar vertentes diferentes, o que resulta em tipos de narrador distintos.
Tipos de narrador
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Narrador personagem
O narrador personagem é aquele centrado no foco narrativo em 1ª pessoa do discurso. Na narrativa, esse tipo de narrador participa das ações que constituem o enredo da história narrada. Observe um trecho do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis:
“Tudo o que contei no fim do outro Capítulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, e sim dispostos:
BENTO
CAPITOLINA
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto.”
Nesse trecho do capítulo XIV, intitulado “A inscrição”, o narrador personagem Bentinho relembra, na fase adulta, o início de sua paixão por sua vizinha de infância Capitu. Como se nota nos verbos e nos pronomes utilizados, a 1ª pessoa discursiva é evidente. Além dessas marcas linguísticas subjetivas, o leitor tem que ter que mente que o narrador personagem, por participar dos fatos que narra, ao mesmo tempo em que transmite mais veracidade ao que conta, também tende a ser mais parcial, ou seja, ele se torna menos confiável, já que só narra o que vivencia, o que vê, o que sente. Isso faz com que sua visão não alcance o todo, não penetre nas percepções psicológicas de outros personagens. No caso de Dom Casmurro, por exemplo, o leitor é levado a crer que o narrador personagem, o Bentinho, foi traído por Capitu, pois tem-se, nessa narrativa, somente a percepção subjetiva dos fatos a partir da visão enciumada do protagonista.
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Narrador observador
O narrador observador, assim como o narrador personagem, é centrado no foco narrativo em 1ª pessoa do discurso. Distingui-se do narrador personagem, pois o narrador observador participa da história não como um personagem protagonista, mas como um coadjuvante que vê o que narra, mas sem ser o centro do enredo. Observe um trecho do romance O nome da rosa, cujo enredo é ambientado na Idade Média.
“O tempo que estivemos juntos não tivemos oportunidade de levar vida muito regular: mesmo na abadia velamos à noite e caímos cansados de dia, nem participamos regularmente dos ofícios sagrados. Contudo, em viagem, raramente ficava acordado após as completas e tinha hábitos parcos. Algumas vezes, como aconteceu na abadia, passava o dia inteiro movendo-se no horto, examinando as plantas como se fossem crisóprasos ou esmeraldas, e o vi andando pela cripta do tesouro admirando um escrínio cravejado de esmeraldas e crisóprasos como se fosse uma touceira de estramônio. Outras vezes permanecia o dia todo na sala grande da biblioteca folheando manuscritos como a procurar neles nada além que o próprio prazer (enquanto ao nosso redor se multiplicavam os cadáveres dos monges horrivelmente assassinados). Um dia encontrei-o passeando no jardim sem objetivo aparente, como se não precisasse prestar contas a Deus de seus atos. Na Ordem haviam-me ensinado um modo bem diverso de dividir o meu tempo, e eu lhe disse isso. E ele respondeu que a beleza do cosmos é dada não só pela unidade na variedade, mas também pela variedade na unidade.”
No romance O nome da rosa, obra do italiano Umberto Eco lançada em 1980, o personagem secundário, Adso de Melk, narra, na velhice, os fatos protagonizados por seu mestre, o frei Guilherme de Baskerville. Assim, nessa narrativa, o leitor só tem acesso à narração e à descrição de fatos vistos pelo narrador observador quando este era um jovem aprendiz que participava de forma secundária das ações que constituem o enredo ficcional. Assim como o narrador personagem, o narrador observador acaba tendo uma visão subjetiva, parcial dos fatos que narra.
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Narrador onisciente
O narrador onisciente é aquele cujo foco narrativo é centrado na 3ª pessoa discursiva. Espécie de “deus” que tudo sabe e tudo vê, esse tipo de narrador sabe o passado, o presente e o futuro de cada personagem na narrativa, bem como seus pensamentos e estados emocionais. Na literatura brasileira, o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, figura como um importante exemplo de obra narrativa em que o narrador predominante é o onisciente. Veja um trecho.
“Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.[...]
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.”
Nessa passagem do clássico de Graciliano Ramos, a cachorra da família de retirantes nordestinos, chamada Baleia, é subjetivada pelo narrador, que lhe atribui consciência. Após levar um tiro de seu dono, Fabiano, que decide matá-la por representar uma despesa a mais para uma família já muito empobrecida pela seca, a cadela tem sua consciência desvendada pelo narrador, como no trecho “Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite?”.
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Exercícios resolvidos sobre tipos de narrador
Questão 1 - (Universidade da Amazônia – 2008) Leia o trecho a seguir:
[...] “Ia andando. De duas em duas casas, no quarteirão, era este aquele, um, dois, até três, não fazia tanta falta, fazia? E Libânia? Teria feito igual? Não. Nunca. Ou capaz? Com Antônio, este do xarão já nem mais o papel. Ou não? O coração diminuía. Tanto nele confiavam e agora nada mais que um gatuninho de doces. Que contas prestaria? Explicar como? “ […]
(Dalcídio Jurandir, Belém do Grão-Pará, p. 233)
A) Privilegia a construção do mundo interior das personagens.
B) Registra eventos pitorescos do cotidiano da cidade por meio dos pensamentos e das atitudes da personagem.
C) Usa no texto tipos pitorescos da cultura e da linguagem regional como marca da segunda geração modernista.
D) Centra na ação intensa vivida pela personagem o desenrolar do texto.
Resolução
Alternativa A. O uso reiterado de interrogações que expressam o pensamento dos personagens, isto é, do discurso indireto livre, revela que o autor de Belém do Grão-Pará privilegia a construção do mundo interior dos personagens na construção narrativa, ao invés de focar na descrição pitoresca do cotidiano da cidade.
Questão 2 - Assinale o que for INCORRETO em relação aos elementos do conto “92”, de Dalton Trevisan, transcrito a seguir.
92
Tarde de verão, é levado ao jardim na cadeira de braços – sobre a palhinha dura a capa de plástico e, apesar do calor, manta xadrez no joelho. Cabeça caída no peito, um fio de baba no queixo. Sozinho, regala-se com o trino da corruíra, um cacho dourado de giesta e, ao arrepio da brisa, as folhinhas do chorão faiscando – verde, verde! Primeira vez depois do insulto cerebral aquela ânsia de viver. De novo um homem, não barata leprosa com caspa na sobrancelha – ea sombra das folhas na cabecinha trêmula adormece. Gritos: Recolha a roupa. Maria, feche a janela. Prendeu o Nero? Rebenta com fúria o temporal. Aos trancos João ergue o rosto, a chuva escorre na boca torta. Revira em agonia o olho vermelho – é uma coisa, que a família esquece na confusão de recolher a roupa e fechar as janelas?
TREVISAN, Dalton. 92. In: Ah, é? 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994. p. 67.
A) A voz narrativa é de primeira pessoa. Trata-se de um narrador-protagonista, a personagem João, que relata o momento em que sofre um "insulto cerebral"– acidente vascular cerebral –, acontecimento que o impede de retornar ao interior da casa.
B) As indicações temporais cumprem importantes funções na estrutura narrativa, especialmente a de imprimir verossimilhança e movimento ao relato. O conto em foco, embora sua natureza seja predominantemente psicológica e os fatos estejam intimamente ligados ao estado de espírito do personagem, apresenta marcas cronológicas da passagem do tempo, como se observa no trecho: "Primeira vez depois do insulto cerebral aquela ânsia de viver".
C) Embora não existam diálogos na narrativa, o narrador, ao empregar o discurso indireto livre, permite que a voz do personagem aflore no texto. Espécie mista de discurso – indireto e direto –, o indireto livre concilia de tal forma as falas do narrador e de João que elas se confundem na enunciação, como se observa no excerto: "… é uma coisa, que a família esquece na confusão de recolher a roupa e fechar as janelas?".
D) Alguns elementos revelam-se importantes na estrutura narrativa por identificarem-se com o estado emocional do personagem. Na situação inicial da narrativa, apesar do desconforto ao ser deixado no jardim ("palhinha dura", "capa de plástico", "apesar do calor, manta xadrez sobre os joelhos"), João mostra-se tranquilo e a natureza reflete esse sentimento: "Sozinho, regala-se com o trino da corruíra, um cacho dourado de giesta e, ao arrepio da brisa, as folhinhas do chorão faiscando – verde, verde!". No final, o espaço, modificado pelo agente transformador da situação de equilíbrio inicial – o temporal –, apresenta íntima conexão com o estado emocional do personagem, que, sentindo-se abandonado, "revira em agonia o olho vermelho…".
Resolução
Alternativa A. A alternativa incorreta é a A, isso porque a voz narrativa não é de primeira pessoa; trata-se de um narrador observador em 3ª pessoa.