João Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908. Além de ser escritor, também estudou Medicina e foi diplomata. Seu primeiro livro de contos é Sagarana, de 1946, e seu único romance, Grande sertão: veredas, foi publicado em 1956. O escritor, que recebeu alguns prêmios em vida e foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 8 de agosto de 1963, morreu em 19 de novembro de 1967.

É um autor da terceira geração modernista (ou do pós-modernismo), em cujas obras é possível perceber a presença de neologismos, estrutura narrativa não tradicional e regionalismo atrelado a temas universais. Também escreveu poesia, apesar de ser mais conhecido pela sua prosa peculiar. É um imortal da literatura brasileira, pois, como ele mesmo declarou: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”.

Biografia de João Guimarães Rosa

Foto de João Guimarães Rosa.

João Guimarães Rosa foi escritor e diplomata. Nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, no estado de Minas Gerais. Quando tinha 10 anos, mudou-se para Belo Horizonte, onde se formou, em 1930, na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (UMG), hoje UFMG. Sua primeira publicação literária ocorreu em 1929: o conto “O mistério de Highmore Hall”, na revista O Cruzeiro. Mais tarde, em 1936, seu livro de poesias Magma recebeu um prêmio da Academia Brasileira de Letras.

Seu primeiro livro de contos, Sagarana, foi publicado em 1946. Em 1952, o escritor fez uma excursão a Mato Grosso, o que levou à escrita do conto “Com o vaqueiro Mariano”, publicado em Estas estórias, livro de 1969. Nessa viagem estava a gênese do seu único romance — Grande sertão: veredas, de 1956. O autor também publicou contos, crônicas e poemas nos periódicos O Globo, Pulso, Correio da Manhã, O Jornal, O Cruzeiro, Manchete, A Manhã, Diário de Minas, Folha da Manhã, O Estado de S. Paulo e Jornal de Letras.

Guimarães Rosa exerceu outras funções além da escrita literária:

  • De 1938 a 1942 — Cônsul em Hamburgo, Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial.
  • De 1942 a 1944 — Secretário de embaixada em Bogotá.
  • Em 1946 e 1951 — Chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura.
  • Em 1948 — Secretário da Delegação do Brasil à Conferência da Paz e representante do Brasil na Sessão Extraordinária da Conferência da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em Paris.
  • De 1948 a 1951 — Primeiro-secretário e conselheiro de embaixada em Paris.
  • Em 1949 — Delegado do Brasil à IV Sessão da Conferência Geral da UNESCO, em Paris.
  • Em 1953 — Chefe de Divisão de Orçamento.
  • Em 1962 — Chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras.

O escritor morreu em 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro. Em vida, foi homenageado com os seguintes prêmios:

  • Prêmio Filipe d’Oliveira (1946).
  • Prêmio Carmen Dolores Barbosa (1956).
  • Prêmio Paula Brito (1957).
  • Prêmio Machado de Assis (1961).
  • Prêmio do PEN Clube do Brasil (1963).

Leia também: Clarice Lispector – autora também representante da 3ª fase modernista

Características literárias de Guimarães Rosa

O regionalismo é uma característica da literatura de Guimarães Rosa.

As obras de Guimarães Rosa estão inseridas na terceira geração modernista (ou no pós-modernismo). Devido a isso, e também a particularidades estéticas do autor, seus livros apresentam as seguintes características:

  • Uso de termos arcaicos.
  • Linguagem poética.
  • Narrativas mais reflexivas e menos dinâmicas.
  • Experimentalismo: neologismos, estrutura narrativa peculiar e anticonvencional.
  • Regionalismo: os termos e elementos da cultura regional mesclam-se com temáticas universais.
  • Inexistência de certezas: no campo social, político, econômico e estético.
  • Prosa intimista: conflito existencial e fluxo de consciência (monólogo interior).
  • Fragmentação: ruptura com a narrativa cronológica tradicional.
  • Temáticas universais: morte, ódio, amor, medo, violência, misticismo.
  • Oposições: bem e mal, velho e novo, rural e urbano, oral e escrito, local e universal.

Obras de Guimarães Rosa

São obras de João Guimarães Rosa:

  • Sagarana (1946): contos
  • Corpo de baile (1956): novelas
  • Grande sertão: veredas (1956): romance
  • Primeiras estórias (1962): contos
  • Manuelzão e Miguilim (1964): novelas
  • Campo geral (1964): novela
  • No Urubuquaquá, no Pinhém (1965): novelas
  • Noites do sertão (1965): novelas
  • Tutameia — terceiras estórias (1967): contos
  • Estas estórias (1969): contos
  • Ave, palavra (1970): diversos
  • Magma (1997): poesias

Sagarana, o primeiro livro publicado por João Guimarães Rosa, é composto pelos contos “O burrinho pedrês”, “A volta do marido pródigo”, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha gente”, “São Marcos”, “Corpo fechado”, “Conversa de bois”, “A hora e vez de Augusto Matraga”. Este último é o conto mais famoso desse livro. Portanto, vamos fazer a análise dele a seguir.

A hora e a vez de Augusto Matraga

Capa do livro “A hora e vez de Augusto Matraga”, o conto mais famoso da obra “Sagarana”. [1]

Augusto Matraga é assim descrito pelo narrador:

“Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado em si. Nem com a menina se importava. Dela, Dionóra, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda — no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul — ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. E sem efeito eram sempre as orações e promessas, com que ela o pretendera trazer, pelo menos, até a meio caminho direito.
[...]

Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede branca.”

Infeliz com o marido, Dionóra, a esposa de Augusto, decide ir viver com outro homem, e leva sua filha junto:

“Mas, na passagem do brechão do Bugre, lá estava seu Ovídio Moura, que tinha sabido, decerto, dessa viagem de regresso.

— Dionóra, você vem comigo... Ou eu saio sozinho por esse mundo, e nunca mais você há-de me ver!...

Mas Dona Dionóra foi tão pronta, que ele mesmo se espantou.

— Nhô Augusto é capaz de matar a gente, seu Ovídio... Mas eu vou com o senhor, e fico, enquanto Deus nos proteger...”

Ao saber do ocorrido, Augusto Matraga manda chamar seus capangas, mas nenhum deles está mais a seu serviço, já que o patrão há muito não os paga. Então, foram trabalhar com o Major Consilva:

“— Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.”

O protagonista então, ofendido, decide ir tirar satisfações com seus rivais:

“Nele, mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma ideia resolveu por si: que antes de ir à Mombuca, para matar o Ovídio e a Dionóra, precisava de cair com o Major Consilva e os capangas. Se não, se deixasse rasto por acertar, perdia a força. E foi.”

Mas Augusto se dá mal, é judiado pelos capangas de Consilva, que lhes dá ordem para matar:

“Puxaram e arrastaram Nhô Augusto, pelo atalho do rancho do Barranco, que ficou sendo um caminho de pragas e judiação.

E, quando chegaram ao rancho do Barranco, ao fim de légua, o Nhô Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue. Empurraram-no para o chão, e ele nem se moveu.

— É aqui mesmo, companheiros. Depois, é só jogar lá para baixo, p’ra nem a alma se salvar...”

Entretanto, num desfecho imprevisível, ele consegue escapar, apesar de ainda ter que lidar com a morte:

“E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do Major — que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência —, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto, medonhos.

— Segura!

Mas já ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço. Era uma altura. O corpo rolou, lá em baixo, nas moitas, se sumindo.”

Os capangas entendem que é impossível um homem sobreviver a uma queda de tamanha altura. No entanto, Augusto, extremamente ferido, é cuidado por um casal que mora na “boca do brejo”. Incrivelmente, ou milagrosamente, depois de muito tempo de sofrimento, ele consegue curar-se, e esse sofrimento significa a sua redenção, ele tem chance de refletir sobre suas maldades e de regenerar-se:

“E desse modo ele se doeu no enxergão, muitos meses, porque os ossos tomavam tempo para se ajuntar, e a fratura exposta criara bicheira. Mas os pretos cuidavam muito dele, não arrefecendo na dedicação.

— Se eu pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!...

Então eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre, que o confessou e conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o faziam chorar.

— Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?!

— Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum...”

Nessa conversa com o padre, o título do conto justifica-se, pois é após ela que Augusto Matraga tem a chance de viver uma nova vida, em busca do seu destino, de sua hora e sua vez:

“[...], o padre se portou ainda mais excelentemente, porque era mesmo uma brava criatura. Tanto assim, que, na despedida, insistiu:

— Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.”

Nesse ponto, entendemos que a vida do protagonista até aqui não tinha sentido, motivo de suas maldades e irresponsabilidades. Depois do sofrimento vivido, do arrependimento, ele encontra um sentido para a sua existência: esperar pela sua hora e sua vez, ou seja, o seu destino, já que, segundo o padre, cada um está destinado a alguma coisa. Assim, suficientemente curado, Augusto e seus benfeitores vão embora. Essa atitude é também uma forma de o protagonista fugir de quem ele foi para forjar uma nova identidade:

“Quando ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o preto fabricara, já tinha os seus planos, menos maus, cujo ponto de início consistia em ir para longe, para o sitiozinho perdido no sertão mais longínquo — uma data de dez alqueires, que ele não conhecia nem pensara jamais que teria de ver, mas que era agora a única coisa que possuía de seu. Antes de partir, teve com o padre uma derradeira conversa, muito edificante e vasta. E, junto com o casal de pretos samaritanos, que, ao hábito de se desvelarem, agora não o podiam deixar nem por nada, pegou chão, sem paixão.”

Augusto Matraga passa a trabalhar com afinco e sem interesses:

“Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganância e nem se importava com acrescentes: o que vivia era querendo ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse. E só pedia, pois, serviço para fazer, e pouca ou nenhuma conversa.”

Agora, anda sempre desarmado, não fuma, não bebe, não busca mulheres, não briga. Vive em constante vigia para combater o mal que há nele. Aliás, esse tema universal, o conflito entre o bem e o mal está presente também na obra O grande sertão: veredas. No entanto, os conflitos de Riobaldo são outros, distintos dos de Augusto, porém ambos parecem lutar contra a própria natureza. Uma natureza que pode aflorar quando o bando de Joãozinho Bem-Bem aparece no povoado. Augusto, pacífico, acolhe o bando e alimenta-o, e fica amigo do chefe:

“Mas, depois de montado, o chefe ainda chamou Nhô Augusto, para dizer:

— Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?

— Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem...

— Pois então, mano velho, paciência.

— Mas nunca que eu hei de me esquecer dessa sua bizarria, meu amigo, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem!”

No entanto, a sua conversão não é fácil, e Augusto fica tentado a aceitar o convite:

“O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...

E o oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seu Joãozinho Bem-Bem, e o Tim, e o Juruminho, e o Epifânio — e todos — rebentavam com o Major Consilva, com o Ovídio, com a mulher, com todo-o-mundo que tivesse tido mão ou fala na sua desgarração. Eh, mundo velho de bambaruê e bambaruá!... Eh, ferragem!...

E Nhô Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes.

Mas, qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mão mais dura...

E só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua penitência, e entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer tirar sua alma da boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente, para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais.

Recorreu ao rompante:

— Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguém não me faz virar e nem andar de-fasto!”

Nesse ponto, o protagonista apresenta sua faceta de herói (ou santo), resistente às tentações e armadilhas:

“E ainda outras coisas tinham acontecido, e a primeira delas era que, agora, Nhô Augusto sentia saudades de mulheres. E a força da vida nele latejava, em ondas largas, numa tensão confortante, que era um regresso e um ressurgimento. Assim, sim, que era bom fazer penitência, com a tentação estimulando, com o rasto no terreno conquistado, com o perigo e tudo. Nem pensou mais em morte, nem em ir para o céu; e mesmo a lembrança de sua desdita e reveses parou de atormentá-lo, como a fome depois de um almoço cheio. Bastava-lhe rezar e aguentar firme, com o diabo ali perto, subjugado e apanhando de rijo, que era um prazer. E somente por hábito, quase, era que ia repetindo:

— Cada um tem a sua hora, e há-de chegar a minha vez!”

Ele decide partir, porque entende que sua hora e vez está em outro lugar. Então se despede de Quitéria e Serapião. Acaba encontrando o bando de Joãozinho Bem-Bem, mas discorda do chefe, que quer vingar a morte de um homem do bando:

“Seu Joãozinho Bem-Bem pigarreou, e falou:

— Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente sua, morta de traição?... É a regra. Posso até livrar de sebaça, às vezes, mas não posso perdoar isto não... Um dos dois rapazinhos seus filhos tem de morrer, de tiro ou à faca, e o senhor pode é escolher qual deles é que deve de pagar pelo crime do irmão. E as moças... Para mim não quero nenhuma, que mulher não me enfraquece: as mocinhas são para os meus homens...

[...]

— Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!”

A sua hora e vez finalmente chega, quando a verdadeira natureza de Augusto Matraga impõe-se, mas usada com fins distintos do interesse pessoal:

“— Pois então... — e Nhô Augusto riu, como quem vai contar uma grande anedota — ...Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto...

[...]

E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos.

— Ô gostosura de fim-de-mundo!...

E garrou a gritar as palavras feias todas e os nomes imorais que aprendera em sua farta existência, e que havia muitos anos não proferia. E atroava, também, a voz de seu Joãozinho Bem-Bem:

— Sai, Canguçu! Foge, daí, Epifânio! Deixa nós dois brigar sozinhos!”

O desfecho dessa luta confirma o destino de Augusto Matraga. Para isso nasceu, para isso viveu, para enfrentar Joãozinho Bem-Bem, para lutar, mesmo que uma única vez, por justiça. Nessa trajetória, Augusto Matraga inicia sua vida sem objetivo, entregue à maldade, fruto da ignorância. Depois, tem uma quase morte e um renascimento, a chance de ser um novo homem, e começa a traçar o seu caminho de santo, na busca da divindade e de seu destino. A história finaliza-se como começou, na violência, agora justificada. O destino é cumprido, Augusto Matraga tem sua hora e vez.

Veja também: Memórias Póstumas de Brás Cubas – romance fundador do realismo brasileiro

Poemas de Guimarães Rosa

Vamos ler, a seguir, dois poemas de João Guimarães Rosa, do livro Ave, palavra, assinados com o heterônimo de Soares Guiamar.

No poema “Ou... Ou”, o eu lírico fala de uma moça e de um moço. Ela vê o moço passar, mas o moço não vê a moça, pois vem de outro lugar. O eu lírico indica que eles têm afinidades, mas como o moço não vê a moça, o encontro não pode realizar-se. O poema termina com o questionamento: foi o moço que passou depressa ou as coisas na vida que acontecem devagar? O que sugere que o encontro não ocorreu porque ainda não era hora:

A moça atrás da vidraça

espia o moço passar.

O moço nem viu a moça,

ele é de outro lugar.

O que a moça quer ouvir

o moço sabe contar:

ah, se ele a visse agora,

bem que havia de parar.

Atrás da vidraça, a moça

deixa o peito suspirar.

O moço passou depressa,

ou a vida vai devagar?

Já no poema “Os três burricos”, o eu lírico é um burrico, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo é três. Ele segue por caminhos difíceis, “estradas de montanha”, e não sabe se volta. Na antítese “Muito é o nada nesta vida”, ele intensifica o vazio existencial desse burrico que é ele. Dos três burricos que havia em um só, dois morreram. Podemos entender tais burricos como facetas do eu lírico ou períodos vividos por ele, o que se comprova no verso “e um morto eu de cada lado”.

O eu lírico afirma que eles se foram, mas ainda estão com ele, que os carrega. Daí podemos entender por que ele é um burrico, pois carrega um fardo, as memórias. Por fim, a estrada termina, ele chega ao seu destino: a morte, seja a de um ser, seja a de um tempo. Por isso ele diz que três vezes ele chegou, ou seja, morreu três vezes, uma morte para cada burrico, apesar de o eu lírico não dar a certeza da morte, já que, na penúltima estrofe, ele diz “que não morreu”, mas, na estrofe seguinte, fala que é “morto o que vivo está”.

Por estradas de montanha

vou: os três burricos que sou.

Será que alguém me acompanha?

Também não sei se é uma ida

ao inverso: se regresso.

Muito é o nada nesta vida.

E, dos três, que eram eu mesmo

ora pois, morreram dois;

fiquei só, andando a esmo.

Mortos, mas, vindo comigo

a pesar. E carregar

a ambos é o meu castigo?

Pois a estrada por onde eu ia

findou. Agora, onde estou?

Já cheguei, e não sabia?

Três vezes terei chegado

eu — o só, que não morreu

e um morto eu de cada lado.

Sendo bem isso, ou então

será: morto o que vivo está.

E os vivos, que longe vão?

Leia também: Poemas de João Cabral de Melo Neto

Academia Brasileira de Letras

João Guimarães Rosa foi o terceiro ocupante da Cadeira 2, da Academia Brasileira de Letras, antes ocupada por João Neves da Fontoura (1887-1963). Foi eleito em 8 de agosto de 1963.

A seguir, alguns trechos de seu discurso de posse, que, em grande parte, homenageia o seu antecessor João Neves da Fontoura:

Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: “os pastos da Vista Alegre”. Santo, um “Padre Mestre”, o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha talvez sido seu único gesto desengajado, gratuito. Tomando da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou “O Burgo do Coração”. Só quase coração — pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.

Mas, por “Cordisburgo”, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, João Neves da Fontoura. — “Vamos ver o que diz Cordisburgo…” — com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, “no coração do Rio Grande do Sul”. [...].

De fim a fundo. Digo, conto o que de João Neves da Fontoura, por afortunada aproximação, me foi dado colher — o transordinário na experiência humana ordinária, ideia e impressão, singelo testemunho simples, do ato ao fato — na memória mais sentida. Para tanto, terei de à-pauta citar-me. Embora. No que refiro, subrefiro-me. Não para a seus ombros aprontar minha biografia, isto é, retocar minha caricatura. Não eu, mas mim. Inábil redutor, secundarum partium, comparsa, mera pessoa de alusão, e há de haver que necessária. O espelho não porfia brilhar nem ser; mas, por de-fim, para usação, bem tem de relustrar-se. Direi.

[...]

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: — “Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...” Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade — impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante ou mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento. Giremos a perspectiva.

Ainda talvez mais que eu, ele vos agradeceria minha presença aqui, aonde desejei vir — para o ver “claro e quieto” que Machado de Assis inculca. Só não cismando, há-de-o, que em sua mesma vereda, a subseguir, orgulhoso e transido, o elenco destes que ganharam vida difícil, trabalharam sem repouso e hora por hora renderam-se à intimação interna — escolha ou chamado. Eles, Neves da Fontoura, Álvares de Azevedo, o que morreu moço, poento de poesia. Coelho Neto, amoroso pastor da turbamulta das palavras. Tenho-os comigo. Pois não descendemos dos mortos?

[...]

Mas — o que é um pormenor de ausência. Faz diferença? “Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta” — Krishna instrui Arjuna, no Bhágavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: JOÃO NEVES DA FONTOURA.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: “Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!” — desfere então o salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Tal discurso foi proferido em 16 de novembro de 1967, três dias antes da morte de João Guimarães Rosa.

Leia também: 1o de maio — Dia da Literatura Brasileira.

Frases de João Guimarães Rosa

Destacamos algumas frases do autor, retiradas de entrevista realizada pelo jornalista português Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966:

“Gosto muito do [povo] português, sobretudo da sua integridade afetiva.”

“O brasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia, enquanto o português é mais pedra.”

“Eu tenho ainda uma costela portuguesa.”

“Quando escrevo, não penso na literatura: penso em capturar coisas vivas.”

“Escrever, para mim, é como um ato religioso.”

E também frases do livro Ave, palavra:

“Amar é a gente querer se abraçar com um pássaro que voa.”

“O passarinho na gaiola pensa que uma árvore e o céu o prendem.”

“Toda vida humana é destino em estado impuro.”

“Também os defeitos dos outros são horríveis espelhos.”

“A queda do Homem persiste, como a das cachoeiras.”

“Saudade é ser, depois de ter.”

“Só as pessoas não morrem: tornam a ficar encantadas.”

Crédito da imagem

[1] Nova Fronteira|Ediouro (Reprodução)    

Publicado por Warley Souza
Sociologia
O que é capacitismo?
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