Violência no Brasil
No Brasil, a violência é um fenômeno sócio-histórico, fundante e estrutural na nossa constituição social. Além de um instrumento político de manutenção da unidade territorial e da base econômica escravocrata, a violência no Brasil desenvolveu-se como uma forma de sociabilidade — o “código do sertão”, como conceituado pela socióloga Maria Sylvia de Carvalho.
Esse processo histórico gerou reflexos culturais e institucionais que, somados a fatores como a concentração de renda, conduziram-nos a ser uma das sociedades mais violentas do mundo e com um alto grau de tolerância a números exorbitantes de assassinatos.
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Causas da violência no Brasil
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Antecedentes históricos
No Brasil, a violência é um fenômeno histórico que persistiu em todos os arranjos sociais, mesmo após diversas mudanças políticas. No período colonial (1540-1822), a Coroa portuguesa valia-se da violência para escravizar indígenas e negros bem como para manter a centralidade política e a unidade territorial em uma colônia tão vasta.
Durante o império (1822-1889), o uso da violência permaneceu nos mesmos moldes e houve também as rebeliões por emancipação política, como:
Mesmo após a proclamação da república, em 1889, que só atingiu legalmente seu apogeu democrático com a Constituição de 1988 (praticamente 100 anos depois), a violência persistiu como instrumento do Estado, especialmente para reprimir populações pobres.
Durante os períodos de ditadura (Estado Novo de 1937-1945 e Golpe Militar de 1964-1985), a violência também foi utilizada como mecanismo de repressão política, mecanismo esse que não foi completamente desmontado após a redemocratização, pois algumas de suas práticas foram mantidas e ainda hoje reverberam, por exemplo, na crescente letalidade policial.
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Dias atuais
Os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques e Roberta Astolfi, apontam que, tratando-se do tráfico de drogas, existe uma relação direta entre competição e violência. A disputa de mercados por facções rivais somada à ampla circulação de armas e à atuação de governos fracos politicamente geram aumento na violência em determinados territórios, como o que ocorre hoje nos estados do Norte e Nordeste, para onde o PCC tenta expandir-se em confronto com a Família do Norte.
Quando uma facção conquista a hegemonia em determinada localidade, a violência diminui. Um exemplo disso é o estado de São Paulo, onde, desde que o PCC hegemonizou-se, as taxas de homicídio diminuíram paulatinamente.
Ao contrário do que se imagina, tentativa de roubo não figura entre as principais causas de morte violenta. Mortes provocadas por assalto compõem um pequeno percentual do total de mortes. Em 2015, por exemplo, menos de 4% dos homicídios eram resultados de latrocínio.
A desigualdade social é um dos fatores que agravam quadros de violência. Os homicídios concentram-se em bairros pobres e atingem, em proporção muito maior, a população pobre. A situação é ainda mais preocupante quando se conjugam a desigualdade e o racismo. A estigmatização da figura do negro como potencial suspeito faz com que a possibilidade de um jovem negro morrer vítima de homicídio seja 23,5% maior que a de um jovem não negro. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, cerca de 70 são negras.
Outro fator preponderante para o aumento da violência é o paradoxo impunidade versus punição. O Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo, mais de 40% dos presos não foram a julgamento. No entanto, o encarceramento em massa está vinculado a delitos que não são contra a vida, principalmente relacionados a drogas e a furtos.
Quando se trata do crime de homicídio, a Justiça leva em média 8,6 anos para concluir um julgamento. Além disso, o baixo investimento no setor de inteligência das polícias para ampliar sua capacidade investigativa faz com que mais de 90% dos crimes de homicídio não sejam elucidados e, portanto, não sejam punidos.
Grandes fluxos migratórios em curto espaço de tempo também são fenômenos geralmente acompanhados de aumento da violência. Um exemplo disso é a cidade Altamira, no Pará, que protagonizou uma explosão populacional em consequência da construção da usina de Belo Monte num curto espaço de tempo e sem que a estrutura de serviços da cidade pudesse preparar-se para atender à nova demanda. Altamira hoje é a segunda cidade mais violenta do Brasil.
A circulação de armas também incide nos indicadores de violência. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que, a cada 1% de armas a mais circulando, há um crescimento de 2% no número de homicídios no país. Além disso, legislações que flexibilizem as regras sobre a posse e o porte de armas propiciam que se diminua a rastreabilidade de armas e munições, o que, por sua vez, dificulta o esclarecimento de homicídios por arma de fogo.
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Tipos de violência
A violência no Brasil é uma questão de saúde pública. Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência é o:
“[…] uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade que possa resultar em ou tenha alta probabilidade de resultar em morte, lesão, dano psicológico, problemas de desenvolvimento ou privação.”
A OMS classifica a violência em três categorias:
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Violência autoinfligida: praticada contra si mesmo.
Exemplos: automutilação e suicídio.
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Violência interpessoal: contra outra pessoa, pode ser doméstica (intrafamiliar) ou comunitária, praticada no ambiente social contra conhecidos ou desconhecidos.
Exemplos: feminicídio e abuso sexual infantil, que, na maioria dos casos, ocorrem em ambiente familiar, são violências interpessoais intrafamiliares; o estupro, o homicídio e o latrocínio (roubo seguido de morte) são violências interpessoais comunitárias.
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Violência coletiva: caracterizada pela dominação social, territorial, política e econômica no nível macro.
Exemplos: atuação do crime organizado por meio de facções e milícias.
A violência interpessoal comunitária é a que se desdobra em mais modalidades, pois se desenvolve em consonância com a complexidade da própria sociedade, por isso, pode ser desencadeada em diversas frentes:
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violência política
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violência de gênero
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violência no trânsito
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violência no campo, entre outras
Quanto à natureza da ação violenta, a OMS classifica em cinco tipos:
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abuso físico
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abuso psicológico
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abuso sexual
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abandono
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negligência
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privação de cuidados
Dados da violência no Brasil
O Brasil vem numa crescente de violência desde a década de 1970. O auge na taxa de homicídios ocorreu no ano de 2017, quando 65.602 pessoas foram assassinadas no país. A partir de 2018, esse número começou a cair, principalmente porque nesse ano foi criado o Ministério de Segurança Pública, os dados sobre segurança foram reunidos em um sistema único de informações e houve uma política planejada e realizada em cooperação entre os entes federados (governo Federal, estadual e municipal).
Em 2018 houve 57.956 homicídios no Brasil, uma taxa de 27,8 mortes violentas por 100 mil habitantes, patamar inferior ao ano de 2014. A diminuição nos índices de homicídio ocorreu em todas as regiões e houve queda de letalidade em 23 estados e no Distrito Federal. Essa tendência de queda confirmou-se em 2019.
Quanto ao perfil das vítimas, no Brasil os homicídios são a principal causa de morte de jovens do sexo masculino, isto é, da faixa etária entre 15 e 29 anos, grupo que compôs 53,3% do total de homicídios em 2018. Estratificando em dois subgrupos, observa-se que o percentual de assassinatos é maior contra jovens de 20 a 24 anos (52,3%), seguido pelo subgrupo de 25 a 29 anos (43,7%).
A desigualdade racial também é perceptível nos indicadores sociais de violência. Em 2018, pretos e pardos foram 75,7% das vítimas de homicídio. Essa assimetria confirma-se também no assassinato de mulheres, pois 68% das mulheres assassinadas no Brasil, em 2018, eram negras.
A redução do número de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 concentrou-se na população não negra. Se comparado ao período que vai de 2008 a 2018, a taxa de homicídio de negros aumentou 11,5%, enquanto a taxa de homicídio de não negros diminuiu 12,9%. Outro dado importante é que a maior parte das vítimas de homicídio é composta por homens solteiros e de baixa escolaridade.
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Cidades mais violentas do Brasil
Tomaremos aqui como critério de definição de violência a quantidade de assassinatos por 100 mil habitantes. Segundo dados do Ipea, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, baseados nos indicadores de mortes violentas de 2017, as 10 cidades mais violentas do Brasil são:
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Maracanaú (CE) – 145,7
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Altamira (PA) – 133,7
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São Gonçalo do Amarante (RN) – 131,2
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Simões Filho (BA) – 119,9
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Queimados (RJ) – 115,6
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Alvorada (RS) – 112,6
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Marituba (PA) – 100,1
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Porto Seguro (BA) – 101,6
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Lauro de Freitas (BA) – 99,0
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Camaçari (BA) – 98,1
É importante observar a predominância de cidades das regiões Norte e Nordeste entre as mais violentas. A taxa de homicídios em capitais também não foge à regra. As três capitais mais violentas são:
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Fortaleza (87,9)
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Rio Branco (85,3)
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Belém (74,3)
De acordo com o coordenador da pesquisa, Daniel Cordeiro, as cidades das regiões Norte e Nordeste nos últimos anos tornaram-se importantes rotas do tráfico de drogas produzidas nos países vizinhos, como Peru e Bolívia. Elas entram no Brasil pelos rios da Floresta Amazônica, de onde são levadas para os portos da costa nordestina, e de lá, para Europa e África.
As facções criminosas, como Primeiro Comando da Capital (PCC), Família do Norte (FDN) e Comando Vermelho (CV), em sua guerra por expansão territorial, provocam um crescimento voraz no número de assassinatos nos municípios que compõem o “corredor do tráfico”.
Outro apontamento importante da mesma pesquisa é que existe um movimento de interiorização da violência, pois a taxa de homicídios cresceu significativamente em municípios pequenos. Entre 2007 e 2017, municípios com menos de 100.000 habitantes registraram um aumento de 51,5% na taxa de mortes violentas, enquanto, em cidades médias (100.000 a 500.000 habitantes), o crescimento de homicídios foi de 14,5% e, em cidades grandes (acima de 500.000 habitantes), foi de 3,4%.
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Consequências da violência no Brasil
No Brasil, a morte violenta figura entre as principais causas de óbito de pessoas jovens, entre 18 e 24 anos, do sexo masculino. Isso significa, em médio e longo prazo, uma mudança demográfica, já que a expectativa de vida da população brasileira está aumentando enquanto a natalidade está diminuindo e a população jovem é o grupo mais atingido por mortes violentas.
Além de uma consequência demográfica, a alta taxa de homicídios nessa faixa etária traz consequências econômicas, pois parte considerável da força produtiva do país está sendo dizimada. A violência endêmica gera:
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grandes perdas econômicas
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desvalorização de imóveis
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prejuízos na produção e comércio de produtos
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perda de confiança no ambiente econômico das regiões afetadas
Os altos índices de mortes violentas, que figuram na casa das dezenas de milhares, números absolutos equivalentes ou maiores aos de países em situação de guerra, também sobrecarregam o sistema público de saúde como uma epidemia. A sociabilidade violenta é, em essência, antipolítica. Argumentações, discussões, conversas são substituídas por coação, medo, insegurança, especialmente onde ocorrem violências coletivas, marcadas pelo controle e domínio territoriais.
Sendo assim, outra consequência da violência é a perda de liberdades democráticas, de expressão, de associação, de ir e vir, e mesmo o direito de propriedade, em muitas partes do Brasil, é afetado pela violência.
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