O negro na literatura brasileira

O negro na literatura brasileira foi representado de forma preconceituosa no passado. Atualmente, a literatura negra enaltece a cultura e a identidade afro-brasileiras.
Por muito tempo, a representação do negro na literatura brasileira esteve associada a preconceitos e estereótipos.

A representação do negro na literatura brasileira foi feita de forma bastante negativa no passado, reduzindo o negro à sensualidade, à pobreza e à violência. Atualmente, a literatura negra nacional busca valorizar a cultura afro-brasileira e a identidade negra. O Brasil possui importantes autores negros, como Machado de Assis, Cruz e Sousa, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo.

Leia também: Literatura africana — tem origem na tradição oral e é marcada pela valorização da cultura

Resumo sobre a representação do negro na literatura brasileira

  • A representação do negro na literatura brasileira foi marcada pelo preconceito no passado.

  • Personagens negros sensuais, violentos e pobres são estereótipos da literatura brasileira.

  • Carolina Maria de Jesus e Machado de Assis são importantes autores negros de nossa literatura.

  • A literatura negra nacional, que busca valorizar a cultura afro-brasileira e a identidade negra, possui autoria, temática, ponto de vista e recepção de pessoas negras.

Videoaula sobre o negro na literatura brasileira

Como é a representação do negro na literatura brasileira?

No passado, a representação do negro na literatura brasileira era feita majoritariamente de forma negativa, com o negro sendo reduzido, muitas vezes, à sensualidade, à pobreza e à violência e sendo visto da perspectiva de pessoas brancas.

No século XVII, por exemplo, a poesia barroca de Gregório de Matos (1636-1696), muitas vezes, se mostra racista. Pessoas negras são vistas como inferiores aos brancos. Um exemplo é o trecho a seguir, de um poema que apresenta a cidade da Bahia, ou seja, Salvador:

Quais são os seus doces objetos?........................Pretos.
Tem outros bens mais maciços?…………….Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?…..………..Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,
Dou ao demo a gente asnal,
Que estima por cabedal
Pretos, mestiços, mulatos.|1|

No século XIX, os autores mostram visões diferentes da pessoa negra. José de Alencar (1829-1877), em sua peça teatral O demônio familiar, mostra um jovem negro manipulador e desonesto, o personagem Pedro:

EDUARDO: [...] (A Pedro) Toma: é tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes.|2|

Bernardo Guimarães (1825-1884), em seu romance A escrava Isaura, retrata as pessoas negras como inferiores à sua escrava branca, como é possível verificar nestas reflexões de Isaura:

[...]. Meu Deus! meu Deus!... já que tive a desgraça de nascer cativa, não era melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das negras, do que ter recebido do céu estes dotes, que só servem para mais amargurar-me a existência?|3|

Castro Alves (1847-1871), abolicionista, retrata o negro escravizado, mas não como um objeto, e sim como um ser humano violentado pelo regime escravagista:

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!|4|

Maria Firmina dos Reis (1822-1917), autora negra, traz o ponto de vista da pessoa escravizada, que anseia por liberdade:

— Minha mãe era africana, meu pai de raça índia; mas de cor fusca. Era livre, minha mãe era escrava. Eram casados e, desse matrimônio, nasci eu. Para minorar os castigos que este homem cruel [senhor Tavares] infligia diariamente a minha pobre mãe, meu pai quase consumia seus dias ajudando-a nas suas desmedidas tarefas; mas ainda assim, redobrando o trabalho, conseguiu um fundo de reserva em meu benefício. Um dia apresentou a meu senhor a quantia realizada, dizendo que era para o meu resgate.|6|

Deixando o romantismo, ainda no século XIX, o escritor naturalista Aluísio Azevedo (1857-1913), em O mulato, traz um protagonista negro que, por ter um pai branco e ser educado na Europa, demora a perceber o preconceito racial brasileiro:

Raimundo, esse vagara pelas ruas da cidade, com o coração encharcado de um grande desânimo. Apoquentava-o menos a estreiteza da situação do que a brutal pertinácia daquela família, que preferia deixar a filha desonrada a ter de dá-la por esposa a um mulato. [...]. Mas todas estas esperanças já lhe não acordavam no espírito o mesmo eco de entusiasmo; agora, o que mais o preocupava era a sua humilhação e o seu amor ultrajado; desejava esposar Ana Rosa, desejava-o, como nunca, mas por uma espécie de vingança contra aquela maldita gente que o envilecia e rebaixava; queria amarrá-la ao seu destino, como se a amarrasse a um posto infamante; queria espalhar bem o seu sangue, porque onde ele caísse, deixaria uma nódoa incandescente; [...].|7|

Esse mesmo autor, em O cortiço, mostra pessoas negras inferiorizadas, animalizadas e sensualizadas:

Ele propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.|8|

Ainda:

E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua cama de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.|9|

Naturalista também é o romance Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha (1867-1897), que retrata o seu protagonista como inferior, moralmente fraco, propenso aos vícios:

Afinal de contas era homem, tinha suas necessidades, como qualquer outro: [...]. De qualquer modo estava justificado perante sua consciência, tanto mais quanto havia exemplos ali mesmo a bordo, para não falar em certo oficial de quem se diziam coisas medonhas no tocante à vida particular. Se os brancos faziam, quanto mais os negros! É que nem todos têm força para resistir: a natureza pode mais que a vontade humana…|10|

Lima Barreto (1881-1922), autor negro do pré-modernismo, evidencia o racismo e a dificuldade da pessoa negra de ascender socialmente ou ser respeitada: “Lembrava-me da vida de minha mãe, da sua miséria, da sua pobreza, naquela casa tosca; e parecia-me também condenado a acabar assim e todos nós condenados a nunca a ultrapassar”.

Também é pré-modernista o autor Monteiro Lobato (1882-1948), que, em seu romance O presidente negro, traz uma visão da pessoa negra como inferior por meio, é claro, da fala de seus personagens:

— Não acho, disse ela. A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente a todos os cruzamentos entre raças díspares. Caráter racial é uma cristalização que às lentas se vai operando através dos séculos.|11|

Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora negra, mostra uma imagem realista da pessoa negra e pobre no Brasil. Evidencia as suas dificuldades, o racismo sofrido e seu pensamento diante dessa realidade, mas também o orgulho:

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.|12|

Por fim, na contemporaneidade, autores e autoras negras buscam não só mostrar a realidade das pessoas negras no Brasil como também valorizar a cultura afro-brasileira. Desse modo, é valorizada a voz de autoria negra e não mais o discurso preconceituoso do branco acerca da negritude, como era no passado.

Estereótipos dos personagens negros da literatura brasileira

Os estereótipos dos personagens negros da literatura brasileira são frutos de preconceitos.

Na história da literatura brasileira, um dos principais estereótipos é a apresentação dos personagens negros como indivíduos sensuais, de sexualidade aflorada, como Rita Baiana, de O cortiço, e Amaro, de Bom-Crioulo. Essa visão, aliás, não está apenas nas obras literárias do passado, pois faz parte da cultura brasileira a crença, obviamente equivocada, de que pessoas negras são mais sexuais.

Outro estereótipo prejudicial é a associação de pessoas negras à violência. Novamente, tomamos como exemplo o personagem Amaro, que acaba cometendo um assassinato; e a personagem Bertoleza, de O cortiço, que se mata de forma violenta, no caso, uma autoagressão.

Além do personagem sensual ou violento, outro estereótipo é o personagem negro pobre e com baixa escolaridade. Nesse caso, é menos um preconceito e mais um lugar-comum. Fato é que a realidade de pobreza da pessoa negra faz parte da desigualdade social brasileira, e a maioria de autoras e autores da literatura negra prefere não fugir dessa realidade.

Principais autores negros da literatura brasileira

Carolina Maria de Jesus é a mais famosa escritora negra da literatura brasileira.[1]
  • Paula Brito (1809-1861)

  • Maria Firmina dos Reis (1822-1917)

  • Luiz Gama (1830-1882)

  • Machado de Assis (1839-1908)

  • Cruz e Sousa (1861-1898)

  • Lima Barreto (1881-1922)

  • Solano Trindade (1908-1974)

  • João Felício dos Santos (1911-1989)

  • Carolina Maria de Jesus (1914-1977)

  • Ruth Guimarães (1920-2014)

  • Joel Rufino dos Santos (1941-2015)

  • Conceição Evaristo (1946-)

  • Geni Guimarães (1947-)

  • Aline França (1948-)

  • Cuti (1951-)

  • Miriam Alves (1952-)

  • Paulo Lins (1958-)

  • Elisa Lucinda (1958-)

  • Esmeralda Ribeiro (1958-)

  • Ana Maria Gonçalves (1970-)

  • Allan da Rosa (1976-)

  • Jeferson Tenório (1977-)

  • Mel Adún (1978-)

  • Lívia Natália (1979-)

Literatura negra

O conceito de literatura negra passou a integrar os estudos literários e culturais a partir dos anos 1970. Dessa forma, ficou em evidência não só as obras escritas por pessoas negras na contemporaneidade, mas também as do passado. No entanto, não basta ser um autor ou uma autora negra para que suas obras façam parte desse tipo de literatura.

A literatura negra é feita por autoras e autores negros ou descendentes de pessoas negras; também apresenta o protagonismo negro e a cultura negra. Assim, é uma literatura de caráter político e identitário. Então, é a temática, a autoria, o ponto de vista e as questões étnicas que fazem uma obra pertencer à literatura negra.

Outro elemento importante é a recepção de obras da literatura negra. Isso porque as obras de literatura negra são destinadas a pessoas negras, mas isso não impede que pessoas brancas as leiam. Por fim, para exemplificar, lembremos que Machado de Assis era um escritor negro, mas obras como Quincas Borba, por exemplo, não fazem parte da literatura negra, pois não apresentam todas as características apontadas acima. Saiba mais sobre a literatura negra clicando aqui.

Notas

|1|MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. Seleção de José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

|2|ALENCAR, José de. O demônio familiar. Campinas: Pontes, 2002.

|3|GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. Rio de Janeiro: Garnier, 1875.

|4|CASTRO ALVES. O navio negreiro: tragédia no mar. In: RIMOGRAFIA, Slim. O navio negreiro. São Paulo: Panda Books, 2011.

|5|REIS, Maria Firmina dos. A escrava. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.

|6|AZEVEDO, Aluísio. O mulato. Belo Horizonte: Crisálida, 2005.

|7| e |8|AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997.

|9|CAMINHA, Adolfo. Bom-crioulo. São Paulo: Ática, 1995.

|10|LIMA BARRETO. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2. ed. Rio de Janeiro: A. de Azevedo & Costa, 1917.

|11|MONTEIRO LOBATO. O presidente negro. Chapecó: UFFS, 2020.

|12|JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014.

Crédito de imagem

[1]Arquivo Nacional / Wikimedia Commons (reprodução)

Fontes

ALENCAR, José de. O demônio familiar. Campinas: Pontes, 2002.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997.

AZEVEDO, Aluísio. O mulato. Belo Horizonte: Crisálida, 2005.

CAMINHA, Adolfo. Bom-crioulo. São Paulo: Ática, 1995.

CASTRO ALVES. O navio negreiro: tragédia no mar. In: RIMOGRAFIA, Slim. O navio negreiro. São Paulo: Panda Books, 2011.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 31, p. 11-23, jan./ jun. 2008.

GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. Rio de Janeiro: Garnier, 1875.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014.

LIMA BARRETO. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2. ed. Rio de Janeiro: A. de Azevedo & Costa, 1917.

MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. Seleção de José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

MONTEIRO LOBATO. O presidente negro. Chapecó: UFFS, 2020.

PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 50, abr. 2004.

REIS, Maria Firmina dos. A escrava. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.

ZIN, Rafael Balseiro. Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista. 2016. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2016.

Publicado por Warley Souza

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